censo comum
Na semana passada, havia um aviso no elevador do prédio anunciando que a recenseadora Raquel se encarregaria de entrevistar os moradores do meu bloco. O aviso não indicava data nem horário. Apenas informava que Raquel tocaria a campainha de casa, devidamente uniformizada e cheia de dúvidas Dizia, também, que era obrigação de todo brasileiro responder corretamente às perguntas do censo, pois, agindo assim, corretamente, estaríamos contribuindo para construir um futuro melhor para o Brasil.
Esperamos a semana toda pela Raquel. A campainha nunca soou. Na sexta, havia um bilhete na caixa de correio: "o(a) recenseador(a) __Raquel____" havia tentado nos encontrar pelo menos duas vezes sem sucesso. "Ela" pedia a gentileza de telefonarmos para para marcar a data e o horário de sua visita. Voltaria especialmente para nos entrevistar. Segundo o bilhete, era obrigação do(a) recenseador(a) visitar todos os moradores da área para a qual havia sido designado(a). Ninguém poderia ficar de fora.
Ligamos para a Raquel ontem de manhã. O telefone tocou uma, duas, três, quatro, cinco vezes. Quando a moça finalmente atendeu, sua voz parecia emergir dos subterrâneos do sono. Disse-lhe meu nome e expliquei quem era. Ela demorou a entender, como se a consciência não estivesse desperta o suficiente para distinguir sonho de realidade. Provavelmente estava de ressaca. Falava arrastado, com dificuldade de articular, o que me pareceu um claro indício que sua língua estava colada aos dentes e às paredes da boca. A saliva, na seca de Brasília, reage com o álcool e produz uma espécie de goma. Mesmo certo de que Raquel teria um dia de merda pela frente - outro efeito colateral do porre brasiliense é a cefaleia lancinante -, sugeri que nos encontrasse em casa, às 14:30. Ela titubeou, concordou e despediu-se com algo semelhante a "enthão, athé de tharde".
Depois do almoço, à espera do censo, deliciei-me com o editorial do Estadão, sentado despoticamente no trono de louça que promove a igualdade entre os homens. Amo a ironia. Mas as páginas seguintes ao mais recente achincalhe à falta de escrúpulos do petismo estragaram o momento, noticiando uma sequência de fatos lamentáveis, como de hábito: a) uma quadrilha de lobistas e políticos corruptos, incluindo o Governador, fraudaram uma licitação milionária no Tocantins; b) os meios de comunicação foram proibidos de divulgar o caso por conta de uma liminar expedida por um desembargador filha-da-putamente obtuso; e c) várias entidades de representação de classe - excluídos os sindicatos pelego-lulistas - protestavam contra os ataques à liberdade de imprensa. Foi o impulso que necessitava para fechar o jornal, higienizar os abismos do corpo, escovar os dentes e bater papo enquanto aguardávamos Raquel.
Ao invés da campainha, soou o telefone. Raquel informou que já havia visitados todos os moradores da 105 sul menos a gente e que, portanto, julgava desnecessário perder tempo conosco. Ela obviamente não estava interessada em construir um futuro melhor para o Brasil. Devia ter acabado de concluir que o vale coxinha que andava recebendo do IBGE não valia a caminhada (e a náusea) debaixo do escaldante sol do cerrado. Perguntei se aquela omissão não caracterizaria algum tipo de "improbidade administrativa" e se a pesquisa não seria prejudicada. Não foi a resposta. Insisti: "tem certeza? Imagine se uma casa a cada quarteirão for ignorada, será que nem assim teríamos um problema?". A reposta foi um não um pouco mais elaborado: "qualquer coisa, a gente completa com a imaginação". E desligou.
Descartado pelo censo como estrume, percebi que ingressava numa das minhas experiências negativas. Um bunda, tão insignificante que não merece nem ser entrevistado pelo censo. Não parece fazer parte das estatísticas brasileiras. Um nada. Moribundo, começava a dar voltas no vicioso círculo da baixa auto estima.
Acontece que aprendi um bocado desde que resolvi perder tempo relatando episódios cinzentos do cotidiano. A maturidade é o momento na vida do burguês em que ele aprende a barrar o princípio de depressão sem a ajuda do zoloft. Bastou refletir um pouco e concluir que Raquel era preguiçosa. A preguiça, versa o censo comum, é a mais brasileira das virtudes.
Esperamos a semana toda pela Raquel. A campainha nunca soou. Na sexta, havia um bilhete na caixa de correio: "o(a) recenseador(a) __Raquel____" havia tentado nos encontrar pelo menos duas vezes sem sucesso. "Ela" pedia a gentileza de telefonarmos para para marcar a data e o horário de sua visita. Voltaria especialmente para nos entrevistar. Segundo o bilhete, era obrigação do(a) recenseador(a) visitar todos os moradores da área para a qual havia sido designado(a). Ninguém poderia ficar de fora.
Ligamos para a Raquel ontem de manhã. O telefone tocou uma, duas, três, quatro, cinco vezes. Quando a moça finalmente atendeu, sua voz parecia emergir dos subterrâneos do sono. Disse-lhe meu nome e expliquei quem era. Ela demorou a entender, como se a consciência não estivesse desperta o suficiente para distinguir sonho de realidade. Provavelmente estava de ressaca. Falava arrastado, com dificuldade de articular, o que me pareceu um claro indício que sua língua estava colada aos dentes e às paredes da boca. A saliva, na seca de Brasília, reage com o álcool e produz uma espécie de goma. Mesmo certo de que Raquel teria um dia de merda pela frente - outro efeito colateral do porre brasiliense é a cefaleia lancinante -, sugeri que nos encontrasse em casa, às 14:30. Ela titubeou, concordou e despediu-se com algo semelhante a "enthão, athé de tharde".
Depois do almoço, à espera do censo, deliciei-me com o editorial do Estadão, sentado despoticamente no trono de louça que promove a igualdade entre os homens. Amo a ironia. Mas as páginas seguintes ao mais recente achincalhe à falta de escrúpulos do petismo estragaram o momento, noticiando uma sequência de fatos lamentáveis, como de hábito: a) uma quadrilha de lobistas e políticos corruptos, incluindo o Governador, fraudaram uma licitação milionária no Tocantins; b) os meios de comunicação foram proibidos de divulgar o caso por conta de uma liminar expedida por um desembargador filha-da-putamente obtuso; e c) várias entidades de representação de classe - excluídos os sindicatos pelego-lulistas - protestavam contra os ataques à liberdade de imprensa. Foi o impulso que necessitava para fechar o jornal, higienizar os abismos do corpo, escovar os dentes e bater papo enquanto aguardávamos Raquel.
Ao invés da campainha, soou o telefone. Raquel informou que já havia visitados todos os moradores da 105 sul menos a gente e que, portanto, julgava desnecessário perder tempo conosco. Ela obviamente não estava interessada em construir um futuro melhor para o Brasil. Devia ter acabado de concluir que o vale coxinha que andava recebendo do IBGE não valia a caminhada (e a náusea) debaixo do escaldante sol do cerrado. Perguntei se aquela omissão não caracterizaria algum tipo de "improbidade administrativa" e se a pesquisa não seria prejudicada. Não foi a resposta. Insisti: "tem certeza? Imagine se uma casa a cada quarteirão for ignorada, será que nem assim teríamos um problema?". A reposta foi um não um pouco mais elaborado: "qualquer coisa, a gente completa com a imaginação". E desligou.
Descartado pelo censo como estrume, percebi que ingressava numa das minhas experiências negativas. Um bunda, tão insignificante que não merece nem ser entrevistado pelo censo. Não parece fazer parte das estatísticas brasileiras. Um nada. Moribundo, começava a dar voltas no vicioso círculo da baixa auto estima.
Acontece que aprendi um bocado desde que resolvi perder tempo relatando episódios cinzentos do cotidiano. A maturidade é o momento na vida do burguês em que ele aprende a barrar o princípio de depressão sem a ajuda do zoloft. Bastou refletir um pouco e concluir que Raquel era preguiçosa. A preguiça, versa o censo comum, é a mais brasileira das virtudes.
1 Comments:
Prezado Sr. Bunda,
Adoro o seu texto. Peço encarecidamente: por favor, seu bundinha, não pare de produzir.
O que abunda não prejudica!
Beijos da sua fã número 2...
Guess who.
Postar um comentário
<< Home