12 outubro 2010

sala de embarque


Amanda e Paulinho namoram há dois anos. Já adquiriram avançado grau de intimidade. Trocam beijos de língua entre garfadas de pizza nas noites de domingo. Viajaram juntos para Itacaré e Bariloche e agora estão a caminho da Europa, ambos pela primeira vez, nova e eternamente juntos, até que a morte os separe. Chegaram ao aeroporto com duas horas de antecedência. Dona Sílvia, mãe de Amanda, adora um aeroporto. Gosta de se imaginar sentindo a ansiedade das pessoas prestes a perder o voo e gosta mais ainda de olhar a vitrine da butique que, entre outros artigos importados, vende perfumes franceses e óculos escuros da Prada. Arrastando o marido, Afonso, por entre prateleiras e prateleiras de muamba, deixa escapar frases como "ai, Fon, essa camisa ficaria linda em você" e, logo em seguida, como se apenas desse asas à imaginação, "e esse óculos? Imagina a gente chegando no clube para almoçar, você com a camisa e eu de óculos novo...". Ele sorri e desconversa, o olhar perdido na vendedora de produtos de beleza femininos. "No exterior é mais barato", argumenta, "vou lhe dar de presente quando formos pra Nova Iorque". Saem da loja de mãos vazias e a cabeça borbulhando de devaneios - sonhos de consumo e flashes de filmes pornô.

Amanda e Paulinho os esperam diante da entrada para os portões de embarque, ela pendurada nele, fazendo o gênero venho-tanto-a-Cumbica-que-nem-vejo-graça. Emburrada, cumprimenta os pais com um amistoso "aonde é que vocês se enfiaram? Estamos plantados aqui há vinte minutos!". Para orgulho dos progenitores, foi tratada desde pequena como o centro do mundo: "estudou em colégio particular e levou duas empregadas à loucura", gabou-se uma vez Dona Sílvia. Justificando-se, derretida, a mãe enfatiza a primeira sílaba do vocábulo importado, "a fila
check in estava enorme. Pensamos que ia demorar". Amanda desacredita, bufa e o genro contemporiza, aproveitando a deixa, "olha lá, amor, depois você reclama que está com saudade da comidinha dela". O sogro ri da piada e toma a iniciativa da despedida. Abraços, beijos, divirtam-se, promessas de presentes e o casal desaparece. Ainda acenando em vão, Dona Sílvia apaga com o lenço uma furtiva lágrima - o clímax de uma ópera suburbana.

Diante do portão de embarque, o casal depara-se com a multidão de brasileiros que contamplam a atordoada movimentação dos funcionários da companhia aérea. Amanda se desanima. Não havia espaço para gente feia nos sonhos recorrentes das últimas semanas. A decepção se mescla à irritação, "ai, que povinho feio", e Paulinho come a bronca, "se você tivesse aquele cartão preto a gente esperava na sala vip e não no meio desse monte de jean charles". Acostumado com os rompantes da esposa, limita-se a apontar para dois assentos vagos, "ali tem lugar. Vem sentar, amor". Aos seus olhos apaixonados de novela das seis, a miséria de espírito se confunde com a graça das crianças que protestam por um pouco de carinho. Senta-se e acomoda a bagagem de mão ao seu lado. "Toma cuidado para não encostar nessas sacolas imundas, Paulinho", recomenda Amanda. Cumprindo a instrução, recosta a cabeça no ombro dela. Ficam em silêncio, contemplativos.

Uma ideia numa cabeça acostumada com pagode e kinoplex tem duração breve, pouco mais de 2 minutos. "Deixa eu ver as espaldas do urso", sussurra Amanda ao ouvido do maridão. Paulinho inclina o corpo para frente, permitindo que ela levante a camisa e examine suas costas. "Com cuidado para não machucar, amor". Amanda coloca os óculos de grau e inicia a cirurgia. "To com água na boca", confessa enquanto espreme uma espinha cor de manteiga. Saca uma caixa de lenços da bolsa e limpa as unhas dos polegares antes de cavocar a omoplata de Paulinho, em busca de um pelo encravado. "Ai, ai, amor!", protesta Paulinho, afastando as costas das mãos da algoz. "Calminha, urso, que a coisa aqui tá feia. Vem com a mamãe". Ele exige uma bitoca antes de se doar novamente ao tédio churdo da esposa. Amanda segue firme na limpeza. Prende a língua entre os dentes e aperta os olhos em momentos mais críticos. Paulinho esboça uma expressão de dor e logo volta a ruminar um devaneio obscuro.

Dez minutos depois, uma aeromoça finalmente anuncia o início do embarque. "Ufa. Vambora, amor, que atrás vem gente!". Os dois se apressam para não perder um bom lugar na fila. As férias estão só começando e o velho mundo os espera.

06 outubro 2010

7 de setembro


Ontem, lembrei-me de uma pouca e boa deste nosso Brasil. Mas antes de contar devo me desculpar pela demora em escrever. Acontece que as discussões políticas no facebook estão em alta, e não consigo conter o ímpeto de comentar certos comentários irônicos e superficiais. Para usar uma analogia digna do nosso Presidente Lula, política em tempo de eleição pode ser como jogo de final de campeonato. Mas vamos ao fato...

De todas as capitais brasileiras, a capital do Brasil, este alphaville chamado Brasília, deve certamente possuir o título de melhor parada militar do País. Nunca tive a oportunidade de exercitar o espírito cívico numa manhã de sete de setembro brasiliense, mas, a julgar pela quantidade de pacotes de salgadinho e latas de refrigerante abandonados na rua, o evento deve ser bastante concorrido. A preparação do desfile começa com pelo menos duas semanas de antecedência. Nas duas margens da avenida que corta o lado esquerdo da Esplanada são armadas arquibancadas de metal. O módulo central, bem em frente ao Ministério da Defesa, é reservado ao Presidente da República e seu séquito de ministros, generais, almirantes, brigadeiros e demais aspones. Tiras de tecido verde e amarelo são amarrados aos postes de luz, do Planalto até a rodoviária. A Brasília se enche de uma beleza patriótica que faria marejar os olhos de qualquer anarquista.

Ao que parece, todo ano, a Presidência formaliza convite a uma autoridade estrangeira para participar do desfile como convidado de honra. Ano passado, quando a França era a nossa melhor amiga, convidaram o Sarkozy, e os caças supersônicos RAFALE rasgaram o céu do planalto central. Sobrevoaram a minha casa, obrigando-me a levantar antes das nove. Zuniam como balas, deixando atrás de si rastros coloridos - vermelho, azul e branco, as cores da liberdade, da fraternidade e da igualdade, e verde e amarelo, as cores do carnaval nos trópicos. Como a grande maioria das pessoas, fico ranzinza quando sou acordado em finais de semana e feriados. Talvez por isso tenha aberto a janela, olhado para o céu, coçado a bunda e pensado laconicamente, "aviões... rastros de merda... viva..."

Este ano, novamente, cabulei o desfile do sete de setembro. Às cinco da tarde, quando o movimento na Esplanada já tinha se reduzido ao voo rasante do lixo ao vento - paisagem que poderia ser o cenário de um filme de faroeste futurista -, arriscamos fazer uma visita ao Museu da República. Para quem não sabe, aqui na capital existe uma praça chamada Conjunto Cultural da República onde estão instalados a Biblioteca Nacional, o museu mencionado há pouco e uma espécie de tampinha de concreto, em que, tudo leva a crer, Niemeyer planejou a instalção de um café ou restaurante. À imagem e semelhança do Memorial da América Latina, o Conjunto Cultural da República é um mar de cimento salpicado de pequenas manchas negras que um dia, na boca de adolescentes, foram pedaços de babalu e ping-pong. No clima desértico do cerrado, uma visita ao museu ou à biblioteca pode custar ao curioso uma
insolação. A temperatura na praça deve ser pelo menos cinco a dez graus mais elevada que a do resto da cidade. O Conjunto Cultural da República é uma chapa de zinco quente. Niemeyer talvez tenha adequado o projeto à insônia durante a qual foi concebido: um local para ser visitado apenas à noite.

O tema da exposição em cartaz era a arquitetura pós-moderna japonesa. Estávamos bastante animados para apreciar as lendárias soluções nipônicas para a falta de espaço. Quase cegos pelo reflexo do sol no solo lunar do Conjunto Cultural da República, adentramos a sombra da rampa que dá acesso ao segundo andar do Museu. Diante da entrada do térreo, havia dois guardas batendo papo e, atrás deles, uma porta de vidro filmado cerrada. Os dois estavam sentados sobre cadeiras de escritório que me chamaram a atenção justamente por serem do modelo genérico - assento giratório, com rodinhas - e estarem completamente fora do lugar. Por um breve instante, tive a sensação de contemplar o mictório surrealista de Duchamp.

"Boa tarde", disse um deles ao perceber nossa presença. "Boa tarde. A exposição?". O homem tirou o boné e coçou a cabeça suada, "infelizmente está fechada hoje". Contestei, "mas hoje é feriado". Ele confirmou, "justamente. Hoje é feriado e junta muita gente na parada militar". Sem compreender o comentário, indaguei, "e daí?". Ele riu, "e daí que ano passado a gente abriu no sete de setembro e o museu encheu de gente". Ainda sem entender, insisti, "e daí?". Ele riu novamente e com um sorriso pacífico de interior de estado no rosto, concluiu, " e daí que só nós dois não damos conta de tomar conta de tanta gente aí dentro".

Resumo da ópera: no dia 7 de setembro, data em que todo mundo está de folga e se dispõe a visitar o plano piloto para comemorar a data nacional, o Museu da República estava fechado. A justificativa: "junta muita gente". O Brasil que me desculpe, mas esta nossa capital é de chutar o pau da barraca...

27 setembro 2010

censo comum


Na semana passada, havia um aviso no elevador do prédio anunciando que a recenseadora Raquel se encarregaria de entrevistar os moradores do meu bloco. O aviso não indicava data nem horário. Apenas informava que Raquel tocaria a campainha de casa, devidamente uniformizada e cheia de dúvidas Dizia, também, que era obrigação de todo brasileiro responder corretamente às perguntas do censo, pois, agindo assim, corretamente, estaríamos contribuindo para construir um futuro melhor para o Brasil.

Esperamos a semana toda pela Raquel. A campainha nunca soou. Na sexta, havia um bilhete na caixa de correio: "o(a) recenseador(a) __
Raquel____" havia tentado nos encontrar pelo menos duas vezes sem sucesso. "Ela" pedia a gentileza de telefonarmos para para marcar a data e o horário de sua visita. Voltaria especialmente para nos entrevistar. Segundo o bilhete, era obrigação do(a) recenseador(a) visitar todos os moradores da área para a qual havia sido designado(a). Ninguém poderia ficar de fora.

Ligamos para a Raquel ontem de manhã. O telefone tocou uma, duas, três, quatro, cinco vezes. Quando a moça finalmente atendeu, sua voz parecia emergir dos subterrâneos do sono. Disse-lhe meu nome e expliquei quem era. Ela demorou a entender, como se a consciência não estivesse desperta o suficiente para distinguir sonho de realidade. Provavelmente estava de ressaca. Falava arrastado, com dificuldade de articular, o que me pareceu um claro indício que sua língua estava colada aos dentes e às paredes da boca. A saliva, na seca de Brasília, reage com o álcool e produz uma espécie de goma. Mesmo certo de que Raquel teria um dia de merda pela frente - outro efeito colateral do porre brasiliense é a cefaleia lancinante -, sugeri que nos encontrasse em casa, às 14:30. Ela titubeou, concordou e despediu-se com algo semelhante a "enthão, athé de tharde".

Depois do almoço, à espera do censo, deliciei-me com o editorial do Estadão, sentado despoticamente no trono de louça que promove a igualdade entre os homens. Amo a ironia. Mas as páginas seguintes ao mais recente achincalhe à falta de escrúpulos do petismo estragaram o momento, noticiando uma sequência de fatos lamentáveis, como de hábito: a) uma quadrilha de lobistas e políticos corruptos, incluindo o Governador, fraudaram uma licitação milionária no Tocantins; b) os meios de comunicação foram proibidos de divulgar o caso por conta de uma liminar expedida por um desembargador filha-da-putamente obtuso; e c) várias entidades de representação de classe - excluídos os sindicatos pelego-lulistas - protestavam contra os ataques à liberdade de imprensa. Foi o impulso que necessitava para fechar o jornal, higienizar os abismos do corpo, escovar os dentes e bater papo enquanto aguardávamos Raquel.

Ao invés da campainha, soou o telefone. Raquel informou que já havia visitados todos os moradores da 105 sul menos a gente e que, portanto, julgava desnecessário perder tempo conosco. Ela obviamente não estava interessada em construir um futuro melhor para o Brasil. Devia ter acabado de concluir que o vale coxinha que andava recebendo do IBGE não valia a caminhada (e a náusea) debaixo do escaldante sol do cerrado. Perguntei se aquela omissão não caracterizaria algum tipo de "improbidade administrativa" e se a pesquisa não seria prejudicada. Não foi a resposta. Insisti: "tem certeza? Imagine se uma casa a cada quarteirão for ignorada, será que nem assim teríamos um problema?". A reposta foi um não um pouco mais elaborado: "qualquer coisa, a gente completa com a imaginação". E desligou.

Descartado pelo censo como estrume, percebi que ingressava numa das minhas experiências negativas. Um bunda, tão insignificante que não merece nem ser entrevistado pelo censo. Não parece fazer parte das estatísticas brasileiras. Um nada. Moribundo, começava a dar voltas no vicioso círculo da baixa auto estima.

Acontece que aprendi um bocado desde que resolvi perder tempo relatando episódios cinzentos do cotidiano. A maturidade é o momento na vida do burguês em que ele aprende a barrar o princípio de depressão sem a ajuda do zoloft. Bastou refletir um pouco e concluir que Raquel era preguiçosa. A preguiça, versa o censo comum, é a mais brasileira das virtudes.

22 setembro 2010

renascido das fezes

Tenho certeza que o leitor já ouviu falar da Fênix, a ave de fogo que, na mitologia grega, renascia das cinzas. É uma bela metáfora sobre a força e sobre a capacidade do homem de se adaptar às circunstâncias "sem deixar a peteca cair". O Bunda é como a Fênix - um idiota de plantão que, no oco digital do universo, renasce das fezes. Um renascimento sem a mesma beleza lírica, mas igualmente surpreendente.

Renasci, mais uma vez, para detonar a miséria de espírito, a pobreza intelectual, as lambanças que tornam este nosso Brasil uma eterna promessa de futuro e, agora também, a burocracia latu sensu. Voltei, embalado por um grupo de amigos que decidiu se unir para formar uma confraria de escritores em potencial. Ainda não tive a capacidade de me inscrever no e-group criado por eles, mas um dia chego lá. Por meio do facebook soube que um dos nobres quase-literatos leu o primeiro post deste Buraco e ficou bastante impressionado com o veneno com que pintei um retrato íntimo da classe média. Para quem não se recorda, o primeiro textículo do Buraco tratava de maus hábitos anais: papel higiênico, água fria, repúdio ao próprio corpo e contrastes entre aparência e essência. Tenho de admitir que fiquei bem feliz em ser citado num veículo de comunicação tão eficiente quanto o facebook. O fato me deu ganas de voltar a escrever. Prometo (tentar) não deixar a peteca cair de novo.

Todo escritor precisa evoluir na sua arte. Todo amador também. O assunto de hoje não é a classe média, mas a "classe burocrática" de Brasília. A burocracia da capital federal é dividida, grosso modo, em cargos de confiança e funcionários de carreira. Os primeiros são as indicações políticas (DAS) e os outros constituem a categoria dos concursados. Muita gente da turma do DAS veio de São Paulo. Estudaram no Largo São Francisco ou na PUC. A maioria formada em Direito, alguns em economia, relações internacionais e ciências sociais. Lembro-me bem de uma eleição, há alguns anos, quando nosso saudoso Maluf concorria a prefeito. Os setores ilustrados e os setores engajados da "sociedade" se aliaram para desbancar a candidatura do turco ladrão. Foi um momento de epifania democrática na efervescente vida política da zona oeste de São Paulo. Todos juntos contra um inimigo comum. Diferenças "ideológicas" deram lugar ao consenso, e se alguém diminuisse o volume das conversas nos bares da Vila Madalena, era possível ouvir as vozes e os violões de Chico Buarque e Geraldo Vandré embalando a moçada. Ridicularizava-se o argumento fundamental do malufismo - o princípio do rouba, mas faz -, invocando a ideia weberiana de que a atividade política é vocação e não um meio de enriquecimento ilícito. Os setores engajados da "sociedade", arautos da verdade, praticamente-inquisidores, eram os mais veementes críticos da falta de ética no exercício do poder. Estufavam o peito e enchiam a boca para escarafunchar o furúnculo da corrupção.

A imprensa brasileira foi recentemente inundada por denúncias de tráfico de influência e nepotismo contra a Ministra da Casa Civil, Erenice Guerra. O Governo acusou os meios de comunicação de conspiração. A ex-Ministra e Chefe há quinze anos de Erenice, Dilma Roussef, afirmou que "é impossível saber o que todas as pessoas da família fazem", eximindo-se de responsabilidade sobre os delitos cometidos debaixo de sua narina. Algumas publicações rasteiras, em nome da neutralidade jornalística, lançaram reportagens acusando outras publicações também rasteiras de praticarem mau jornalismo, desinformando o público a respeito dos fatos para favorecer a oposição, liderada pelo "candidato tucano e seus demos". A turma do DAS, cujo núcleo duro é o setor engajado da "sociedade", faz coro com tais veículos e, ao invés de apresentar provas que desmintam as denúncias, defende o Governo com base em acusações. Fazem-no com vapor nas retinas e a voz exaltada, a poucos centímetros de perder-se no grito - algo parecido com o que deve ter sido o autoritarismo bolchevique. O "argumento" que mais tenho ouvido é este: "em 98 o PSDB pagou para aprovar a lei que permitiu a reeleição do FHC".

Vamos lá... De minha parte, adoro discutir política, apesar do estresse que esse tipo de discussão provoca. Sou contra a Dilma e contra o PT, ponto final. Faço questão de dizer isso logo de cara. É a deixa para o interlocutor supor que sou tucano ou democrata-demoniáco. Petista tem mania de perseguição, não sei por que. De imediato, surgem argumentos do tipo "em compensação", como o mencionado há pouco. CAGUEI E ANDEI para o PSDB. Quero apenas que me apresentem argumentos convincentes para confirmar o partidão, corrupto e aliado de figuras deploráveis como Sarney, Renan Calheiros e (até hoje fico pasmo) Fernando Collor de Melo, no comando do País por mais 4 anos. Há muitos outros canidadatos além do vampiro. Há, inclusive, uma candidata de origem simples e que, ao contrário do nosso atual Presidente, redentor dos oprimidos, orgulha-se, e muito, da sua educação formal. Digo isso tudo e recebo o seguinte argumento: "dos males o menor". Ou seja: o vampiro é ladrão, a criacionista é despreparada (e crente) e a Dilma, apesar de sua assessoria corrupta, é a solução. Tem cabimento? Não tem.

O ponto onde quero chegar é que a turma do DAS e grande parte do setor engajado da "sociedade" queima a língua, renega o passado e ofende a ética. Votar no PT hoje é, fundamentalmente, igual a votar no Maluf, algo que nos idos da década de 1990 era deplorável, punido no sétimo círculo do Inferno. Prevalece na cabeça do eleitor petista o velho e tosco bordão do turco bandido: "rouba, mas faz". É uma pena.

29 abril 2009

TOQUE

A síndrome do Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOQUE) corrói o cérebro da classe média. Trata-se do mau gosto nos mínimos detalhes. Em tudo o que põem a mão há um toque de refinamento. Por exemplo: a mania de converter nomes mundanos em criações literárias de banca de jornal. Se a fulana tivesse nascido em berço esplêndido – ou de pais minimamente ilustrados no bom senso –, chamar-se-ia Carolina ou Adriana ou Mariana. Como nasceu no subúrbio da cidade grande, numa daquelas casas subtraídas de quintal, cujos portões invadem o passeio público para dar lugar à traseira do carro do ano, financiado em 36 vezes, atende pela graça de Caroline, Adriane, Mariane. A mãe, obesa e loira, excluídas as raízes dos cabelos, e o pai, tatuado, fortinho&foda, escolheram o nome por conta do verniz, como se os sufixos -ane, -ene e -ine denotassem estirpe e fossem muito comuns na literatura francesa do século XIX. A menina cresce idolatrando Xuxa e todos os Genéricos congêneres: Angélica e Eliana na versão infantil, Adriane Galisteu e Luciana Gimenez na versão adulta e Hebe Camargo e Ana Maria Braga na versão senil/esclerosada. Dá escândalo no shopping sempre que passa diante de uma vitrine e identifica o mais novo modelito de sandália assinado por qualquer uma de suas ídolas. A mãe, que não gosta de fazer feio nos almoços familiares de domingo, geralmente realizados na choperia do bairro, ao sabor de galeto de frango, tampouco resiste a comprar o acessório de plástico rosa (no cartão de crédito do marido) para embelezar a filha. No fim de semana, a felicidade vem em dobro: a mãe mostra que não só entende de moda como pode pagar por ela e a menina, fantasiada de boneca de luxo, interpreta, para os parentes e para as demais pessoas presentes no restaurante, a última canção de Ivete Sangalo. Do outro lado da mesa, a madrinha, orgulhosa, bate palmas e comemora, “parece uma atriz mirim!”. O toque pode representar a decadência mais prosaica e feliz. Caroline e Adriane e Mariane cumprirão seu destino e tornar-se-ão putas, senão de fato, pelo menos de espírito.

07 abril 2009

bunda is back!


De fato, Bunda is back. O novo textículo ficou apenas um fim de semana no ar, e já tenho o prazer de degustar um comentário - breve, mas elogioso. Ora, todos gostamos de ser o centro das atenções. Em particular os bundões, que, se não se expõem ao ridículo, ao escárnio de todos, passam integralmente despercebidos, como aparelhos de TV em tardes de domingo. Bundões falam sozinhos, para as paredes. Prestar-lhes atenção é o mesmo que notar algo fora do lugar ou fora de sintonia. Saudações a todos que voltam a se aventurar neste buraco negro.

Passei o almoço de hoje em estado de autismo. Fui convidado pela minha chefe para sentar à mesa junto com funcionários de terceiro e quarto escalões do Ministério vizinho ao nosso e de uma das agências governamentais sediadas no Rio. Predominaram conversas relacionadas a processos burocráticos, ponderações acerca do papel do Estado como fomentador de micro e pequenas empresas e os habituais gracejos sobre a canalhice que corre solta nos Poderes Legislativo e Judiciário. Acompanhei esses tantos assuntos do mesmo bunker de onde degustava, com perplexidade e desconfiança, a comida natural que rendeu ao cardápio do restaurante o direito de ostentar preços, no mínimo, indecentes. Brasília é uma cidade no litoral do lago Paranoá - daí a mania carioca de saúde, magreza e pele cor de cenoura. Restaurantes naturais fazem bastante sucesso nesta praia. Prosperam. Fui incapaz de me engajar na conversação que se desenrolava diante de mim. Já experimentei sensação semelhante no teatro, ao assistir a peças que não me disseram nada ao espírito. Não é por falta de compreensão do que está sendo dito. Tem a ver com uma modalidade de tédio que não é bem tédio, mas completo desinteresse por aquilo que eu poderia dizer caso quisesse dizer algo. Melhor olhar através das palavras, decifrar os pensamentos e as neuroses que os dedos e os ombros das pessoas não sabem camuflar.
Escritores são retratados como autistas nos filmes porque escrever exige mesmo um bom bocado de autismo antes da labuta com a caneta e o teclado. Na vida real, porém, compartilhar refeição com alguém assim é disperdiçar uma hora e meia do dia na companhia de um completo babaca. Não se fazem mais literatos como na ficção de antigamente, apenas bundões e prepotentes orgulhosos.

Acordei do transe quando o garçom me abordou com a máquina do Visa e com a informação de que lhe devia 44 reais e 70 centavos, com serviço. Paguei no crédito para não ter que me deparar com trouxinhas de berinjela recheadas de
cream cheese (crim xisi) e tomate seco até o mês que vem.

04 abril 2009

a volta do malandro


Nesta vida, o tempo passa rápido. Lá se vão dois anos desde o último textículo. A natureza, no entanto, é estática. Como rezam o ditado e a empolgante canção da ex-banda de Carla Perez: pau que nasce torto, nunca se endireita. Tornei-me servidor público; “alto funcionário” do Governo federal. Tenho um salário e uma rotina em Brasília. Burocrática, sem dúvida, mas enfim posso dar-me o luxo de ir ao supermercado e comprar queijo maasdam e vinho do Porto, dois caprichos que outrora me custavam o dinheiro que não tinha. Meus amigos agradecem imenso - finalmente tenho para custear a cerveja de quinta-feira. Aqueles que se diziam amigos não perdem a oportunidade de cobrar-me antigas dívidas que a verdadeira amizade teria tratado de prescrever. Que seja - quem não teme, não deve. A tão almejada estabilidade financeira, situação gozada apenas pelos definitivamente empregados - carteira assinada e dinheiro aplicado -, chegou. Todos os dias, saio de casa engravatado para o trabalho. Por baixo do terno e do orgulhoso aspecto típico dos recém admitidos diplomatas, misto de executivo prodígio com intelectual humanista, o bom e velho bundão. Como disse, a natureza das coisas e das pessoas não muda. Nem perdoa.


Acabo de regressar do primeiro ensaio daquele que virá a ser o mais irreverente bloco carnavalesco de Brasília. Os chegados da repartição tiveram a espirituosa idéia de lançar uma banda de sambas e marchinhas para tornar a idéia de estar condenado à Capital Federal para o resto da vida profissional menos insuportável. Produzimos um barulho terrível, mas bastante animado para uma tarde de sábado chuvosa. Unidos pela alegria e pela batucada, tomamos muita cerveja e comemos muito fandangos. A diversão pode ser simples como bater papo à varanda da casa, diante da piscina com cascata e do jardim meticulosamente aparado. Começo a entender o prazer de alguns em passar a tarde com os amigos da faculdade, diante da grelha em brasas e imerso no dialético debate sobre a santa trindade - mulheres, futebol e cachaça. Afinal, participar de uma banda de samba me torna mais um partícipe daquele abominável universo mental do playboy da Zona Oeste de São Paulo? A princípio, sim. O Rio de Janeiro, porém, há de redimir-me.


O Presidente do bloco, alcunhado “Eternos nesta Brasila” por conta de um vídeo que há muito circula no youtube e retrata um jovem ator global, astro de malhação, dizendo abobrinhas durante festa da high society brasiliense, enriquecida por meio de esquemas de grilagem e corrupção, é carioca. Cariocas também são os homens do tamborim, do pandeiro e do surdo. Ora, se Vinícius de Moraes chamou São Paulo de túmulo do samba não foi à toa. O samba nasceu com o Rio de Janeiro: a cidade é a pátria de todos os mestres desde Noel. O que seria do Bola Preta no fogo cruzado de motoboys da Avenida Paulista? O que seria da Banda de Ipanema na Marginal, desfilando loucura às margens do Rio Pinheiros? Quando um grupo de playboys paulistanos reúne-se com pretensões carnavalescas não se pode esperar mais do que uma solução trivial para cativar a atenção daquelas menininhas que se formaram no colégio junto com eles, mas ainda não foram fisgadas pelo anzol dourado do casamento perfeito. Aqui a coisa é distinta. Meu recente envolvimento com o tamborim explica-se pela empolgação coletiva e de sotaque inconfundível que marcou um almoço de sexta-feira há algumas semanas. Participar do bloco é quase um pressentimento, como tantos outros que vez ou outra perturbam meus pensamentos. Em fevereiro do ano que vem, espero celebrar meu último carnaval no Brasil antes de uma longa década de trabalho e reflexão no exílio. Que seja ao som do tamborim e entre bons amigos sambistas de verrrdade.