16 agosto 2006

frits no azeits


Dizia a todo mundo que ela tinha olhos glaciais, como icebergs, e que tais olhos, impossíveis, inimagináveis, haviam vislumbrado tantas dimensões quanto a imaginação turbinada pelas drogas lisérgicas é capaz de produzir. Suas retinas eram círculos de um negrume sólido e contorno preciso, imersas no mar morno do Caribe. A íris, anil como o gelo ártico ou o céu nos trópicos quando o inverno chega e as nuvens rareiam. Icebergs, água marinha, éter...

Descrever coisas demasiadamente belas requer poesia séria – requintes de sutileza, sofisticação intelectual e horas de compenetração para atingir a síntese formal de idéias de potencial inesgotável –, algo que a sua personalidade, alguns meses depois, para a minha infelicidade, revelou-se indigna de merecer.

Por incrível que pareça, a tristeza que envolveu a descoberta de que a número 4 não valia a pena (literalmente, no caso) não teve nada a ver com as perversões da personalidade, tão comuns entre os bípedes. Não foi o irresistível impulso de trair o parceiro e atrair terceiros (peço perdão pelo uso da função poética, empregada aqui com pobreza e em momento inoportuno), o qual, cedo ou tarde, assola qualquer relacionamento, que me impeliu a desistir dela. Tal intenção seria impossível de mascarar sob a cristalina superfície daqueles hipnóticos olhos de vidro; a mágoa é o revés da surpresa.

Não possuo título em psicologia nem sou afeiçoado aos assuntos da medicina, mas posso afirmar com segurança – qualquer um poderia faze-lo, inclusive, já que todos possuímos certos conhecimentos inatos sobre a mecânica do mundo e do comportamento humano – que a número 4 tinha, senão um, dois ou três parafusos a menos. Uma patologia adquirida por anos de dedicação ao consumo desenfreado de substâncias tóxicas, ilícitas e divertidíssimas e, é claro, toda uma complexa conjuntura de antecedentes: instabilidade familiar e predisposição psicológica (na verdade, quase uma necessidade fisiológica) para a insanidade.

Entre as muitas histórias cabeludas que me contou, disse que morou em Londres durante alguns anos, trabalhando como modelo e namorando um DJ que, além de amor, fornecia-lhe toda a sorte de narcóticos, leves e pesados. Foram anos confusos aqueles, relatou, em que os dias fundiam-se uns nos outros como as cartas de um baralho mágico. Nos dias bons, olhava-se no espelho e o reflexo revelava uma frágil boneca de louça branca cujas olheiras eram as sombras de um velho salgueiro. Nos dias ruins, era incapaz de encontrar forças para sair da cama. No pior dos dias, entrou em coma e quase morreu de overdose.

Coisas assim são pesarosas de ouvir, mas divertidas de contar. Não tardou muito e a número 4 recebeu diversos apelidos politicamente incorretos dos meus companheiros de bar, como lóque e frits no azeits – este último, em homenagem ao Mussum, o saudoso Trapalhão alcoólatra. O conselho que não cansava de ouvir: administrar a loucura dos outros é trabalho pra enfermeiro de manicômio...

E não é que eles me convenceram?