27 outubro 2006

cruzada fecal


Trata-se de um estudante comum. Caminha pensativo pela Praça do Relógio, em direção à Faculdade de Economia e Administração. Percebe-se pelo seu semblante grave que muitas e complexas idéias atribulam seu pensamento. Jeans e sandálias de couro, guia por baixo da camiseta branca, além de certa ginga carnavalesca, sugerem prontamente que é estudante de humanidades.

Não é, contudo, um típico exemplar da FFLCH. Esse rapaz tem cabelos curtos, a barba feita, roupas novas e limpinhas; em nada se assemelha aos neandertais marxistas ou revolucionários anarco-sindicalistas do Centro Acadêmico. Tem ares esclarecidos, quase revisionistas.

Com certeza não o veríamos em manifestações contrárias à reforma do “espaço aquário”, por exemplo, o chiqueiro no térreo do prédio da História – que mais parece um grande mictório – onde a vanguarda do movimento estudantil reúne-se para mudar o mundo. Ele é usuário da sala de estudos, afeito aos livros e, portanto, ao isolamento acústico. Sabe muito bem que as passeatas e barricadas da esquerda uspiana, formada majoritariamente pelos egressos das escolas particulares da Zona Oeste, são espaços de sociabilidade. Plain and simply, festividades onde todos podem encher a cara sem se sentirem culpados, pois o porre é político. O lema da esbórnia é tão vago quanto patético: “igualdade, justiça social, fim do imperialismo, fora FMI e não se esqueça de VOTAR NULO”. Cerveja, R$ 1.50, vinho, R$ 1.00.

O motivo pelo qual dirige-se à FEA fica assim esclarecido. Quem já visitou a FFLCH provavelmente teve a oportunidade de conferir o estado deplorável de seus sanitários. O estádio do Pacaembu possui dependências mais dignas. Alguns corredores da História lembram as primeiras linhas do célebre Manifesto Comunista, que diz, “um espectro ronda a Europa – o espectro do comunismo”. Fantasmas que fedem a fossa assombram-nos, levantando a suspeita de que a FUVEST deveria aplicar exames psicotécnicos junto com o vestibular.

Geralmente, uma das primeiras coisas que as pessoas aprendem no colégio são as regras básicas da convivência social e da higiene pessoal. Há um cartaz nas escolas primárias canadenses que diz, “All I really need to know I learned in Kindergarten”. Tudo indica que os universitários de humanidades queimaram etapas na pré-escola; não foram introduzidos à civilização. Tudo mesmo. Um passeio rápido pelos reservados da FFLCH revela mijo nas lixeiras, merda esfolada no vaso, cuspe nos cantos, catotas de nariz abandonadas nas paredes como marcas de pneu no asfalto e toda a sorte de obscenidades e racismos rabiscados com caneta BIC.

Fazendo jus à máxima de Walter Benjamim, “nunca houve um monumento da civilização que não fosse também um monumento da barbárie”, a USP, fina flor das instituições de ensino superior, esconde em suas dependências – ou melhor, esfrega na cara e, principalmente, no nariz de seu pessoal – o mais mórbido esgoto: a absoluta falta de educação. Não, nosso herói, que cultiva alma lírica e sensibilidade árcade, jamais conseguiria atingir a plenitude celestial da evacuação em ambiente tão sórdido.

Curioso é o copo plástico vazio que leva consigo. Vai batucando nele enquanto reflete sobre a intimidade e sobre a desastrosa realidade sanitária da FFLCH. Há intimidades moralmente obscenas e intimidades fisicamente imundas – qual será pior? Não chega a formular conclusões. No mesmo instante em que sente fisgar seu intestino delgado, muda de expressão e aperta o passo. O tempo urge, a tripa ruge. Olha com carinho para o copo. Em breve, será seu melhor amigo.

Ao ingressar no prédio da FEA, o bafo frio do ar condicionado refresca-lhe a pressa. Sobe a rampa central e adentra o banheiro masculino. Um eldorado de Pinho Sol descortina-se à sua frente. Ladrilhos impecáveis, sabonete líquido à base de aloe vera (o nome raffiné da tupiniquim babosa), mictórios cuja descarga é acionada pressionando-se pedais no chão, silêncio asséptico. Só falta música ambiente. Mais precisamente, a sonata n. 2 para piano e violoncelo do Rachmaninov.

Sua primeira medida é encher o copinho plástico de água. Depois, apanha um protetor de assento de papel. Tranca-se no reservado central, melhor iluminado. Faz o que tem que ser feito em grande estilo, quase se sentindo em casa. Considera-se o magnata dos infortunados, o marajá do Coco; vivesse no tempo de D. Pedro II, seria o Marquês de Piriri. Pleno, pensa que evacuar deve proporcionar idêntica sensação a visitar o Olimpo. Afrodite, Atena, Hera, Hebe, Ismênia... Um raio de fúria sexual incendeia sua imaginação. O impulso logo morre.

Bukowski dizia que obrar é como escrever poemas, processo em quatro etapas. Primeiro, o poeta enfrenta o incômodo físico da idéia. Conceito sem forma, prenúncio de poema, ela tem necessidade imediata de vencer o plano ideal e ganhar o papel. Segundo, ele deve empenhar-se em realiza-la, trabalhando duro, suando a camisa, forçando conceitos líquidos a adaptarem-se aos duros moldes da métrica e da rima. Terceiro, desfruta o prazer de contemplar sua obra pronta – troféu glorioso, porém descartável. Quarto, desfaz-se do poema como se nunca o houvesse pertencido, acionando a descarga e entregando-o ao leitor.

Terminado o serviço, o copo revela sua utilidade essencial. Só as práticas íntimas revelam se os indivíduos possuem ou não firmeza de caráter. Nosso herói, adepto xiita da limpeza e, portanto, do bidê e do chuveirinho, encharca tiras de papel higiênico, esse triste utensílio imortalizado pela classe média, antes de dar-lhes funcionalidade. Mata, assim, dois coelhos com uma única cajadada: otimiza a eficiência precária do papel e previne o aparecimento precoce da “teimosinha”, leia-se hemorróidas.

Completa-se assim a cruzada fecal. O rapaz observa, com orgulho, as dimensões continentais daquele pedaço de si que generosamente doou à FEA. Presente de socialista esclarecido para capitalista alienado, tem certeza de que outro fefechelento esqueceria de dar descarga de propósito. Consideraria esse lapso uma espécie de manifesto político. Pobre porcalhão.

19 outubro 2006

coprofilia


12/10/06
(apontamentos do meu diário)

Não pode a nossa reles humanidade sonhar com ato mais sublime que ir de corpo. Sentado ao trono, todo servo é rei; obrando, o soberano despe-se de toda sua realeza.
Marquês de Sade

Meu aparelho digestivo funciona de maneira impecável, conduzindo-me ao trono duas vezes ao dia. Os horários em que se manifesta são por volta das três horas da tarde e das nove horas da noite. Há aí uma lógica bastante simples: refeição – peristaltismo – urgência.

Nunca padeci de prisão de ventre. Deve doer. E causa câncer anal. O pai de um colega meu do Ritz teve isso. Morreu em lenta agonia. Além da quimioterapia, submeteu-se a mais terrível cirurgia que pode existir. O seu intestino grosso estava inteirinho tomado pelo “caranguejo”. Os médicos tiveram que lhe extrair o órgão e também o cu. Instalaram uma sonda no lugar, e ele passou a viver preso a sacos plásticos que espontaneamente se enchiam da sua própria merda e tinham de ser trocados três vezes ao dia. Dormia, acordava, banhava-se, almoçava, lia poesia, comia a esposa, tudo acompanhado do aparelho fétido, carinhosamente batizado de “mulatinho”. O velho não perdeu o rebolado com a desgraça. Pelo contrário, brincava que de hemorróidas jamais sofreria de novo. Quando os netos vinham almoçar e anarquizavam a casa, bradava, “caralho, se não pararem com a baderna, vai voar bosta na cabeça de vocês!”. A molecada caía na gargalhada sob os olhares de reprovação dos pais. A doença era apenas um motivo a mais para rir da frágil biologia humana. Mas a alegria durou pouco. O quadro clínico do velho degringolou de repente. No leito de morte, ainda encontrou fôlego para o derradeiro chiste. Anunciou que desejava ser canonizado, pois partia dessa para a melhor praticamente transformado em anjo. “Se é verdade que os mensageiros do Senhor não têm sexo, então é porque também não têm genitália – não cagam nem peidam. A mim, só me faltam asas!”, sentenciou com dificuldade e apagou. Um odor fúnebre dominou o quarto. A família lamentou profundamente o falecimento. Finda a choradeira, o enfermeiro da noite desatarraxou o “mulatinho”. E o velho foi esquecido no dia seguinte à missa de trigésimo dia.

ENFEZADO
adjetivo
1 tomado de raiva, aborrecimento ou birra; irritado
2 de gênio temperamental, irascível
3 que não se desenvolveu; raquítico
4 de dimensões reduzidas; pequeno, acanhado
5 Regionalismo: Brasil.
que empacou (diz-se de animal)

O verbete “enfezado” designa o estado de espírito característico de quem tem prisão de ventre. Literalmente: vísceras abarrotadas de fezes. Daí, o mau humor crônico.

Nas horas em que o dever fisiológico impele-me ao reservado, geralmente estou na USP resolvendo as “pendências acadêmicas” que me fazem refém do terceiro grau há quase seis anos. Isso é realmente constrangedor. Mas esse causo, contarei semana que vem.

Esse utensílio sanitário aí em cima leva o divertido nome de SQUAT TOILET.


07 outubro 2006

desbunde à la conga


Nos anos 1980, ela atingiu o auge de sua carreira como cantora com os hits "Freak Le Boom Boom", "Conga Conga Conga" e "Melô do Piripiri". Hoje, aos 47, Gretchen tornou-se atriz, estrela do longa-metragem La Conga Sex, que deverá ser lançado em novembro. O filme, produzido pela Brasileirinhas, promete picantes cenas de sexo explícito.

Mal posso esperar. Gretchen, como Pelé, é praticamente uma logomarca da cultura de massas brasileira. Um mito. Só que no caso dela, também um mito político. Gretchen foi a criadora da mais sublime forma de protesto político, que, através do fio dental, contestou a tradição e todos os costumes reacionários da moral autoritária. Na Alemanha de Karl Marx, falava-se em vanguarda revolucionária; no Brasil da Mãe Joana, falamos em retaguarda incendiária. Gretchen, no campo da cultura popular, encabeçou o movimento de abertura pós-regime militar.

A década de 1980 foi tempo memorável: além de Gretchen, havia Xuxa, Menudos, Titãs, Paralamas, Trapalhões, jogo do bicho, José Sarney e vários outros carnavais. Uma das maneiras que o país encontrou de exorcizar a censura imposta por tantos anos pela ditadura foi o desbunde. Esta curiosa expressão, que a língua lusitana incorporou do quimbundo, é usada aqui e em Angola para designar estados profundos de êxtase e/ou deslumbramento. De fato, nada foi mais arrebatador e subversivo do que ver a Gretchen sacudir a poupança em rede nacional. Sem sombra de dúvida, ela foi a rainha do desbunde.

Infelizmente, a lógica do capitalismo dá vida curta às manifestações autênticas de cultura. Atentos aos lucros fáceis que a nudez feminina poderia proporcionar a curto e longo prazo numa nação afeita ao futebol, à cerveja e às estripulias eróticas, empresários e produtores trataram de apossar-se do desbunde, esvaziando-o de seu conteúdo explicitamente político. Assim, o que antes era uma modalidade tropical&radical de protesto transformou-se no lugar comum das tardes de domingo e noites de todos os outros dias da semana. As loiras e morenas do axé nada mais são que subprodutos da cultura revolucionária dos anos 1980; distorções grosseiras – ainda que deliciosamente carnudas – da esquerda brasileira.

Há um quê de nostalgia infantil nessa nova superprodução cinematográfica, La Conga Sex. Lembro de cada uma das canções da Gretchen; até hoje elas animam as pistas de dança e embalam a loucura da minha precoce geração, nascida entre 1978 e 1983. Porém, sinto também que “ímpetos políticos” motivam-me a adquirir o filme, quase como se assistir a ele fosse o dever cívico de participar de uma passeata ou manifestação - a mais promíscua manifestação de todos os tempos. Falem a verdade: quem é que não vai até a banca comprar o DVD ou baixa-lo pela internet?