28 setembro 2006

terceiro molar


Diz a ciência que os seres humanos evoluidos nascem sem os terceiros molares, pois, segundo a teoria darwinista, eles já não têm mais função. Diz a sabedoria popular, refutando esta tese, que os terceiros molares anunciam a chegada da maturidade; por isso, são chamados de dentes do siso (siso, com s, significa juízo). Disse o Dr. Paulo Tony quando ergueu contra a luz a radiografia panorâmica da minha boca na manhã de terça-feira da semana passada, “Bunda, vou te contar... Deus foi ingrato mesmo. Ainda bem que este é o último”.

Uma das características que mais prezo nas pessoas é o senso de humor. O sarcasmo descontraído e inoportuno do Dr. Paulo Tony foi encorajador. Minha última experiência odontológica, cinco anos antes, havia sido, digamos... catastrófica. Sentei-me na cadeira da Dra. Loren, uma moça sorridente e amável cuja especialidade, por incrível que pareça, era atender crianças, às 9 da manhã e levantei da cama do hospital Albert Einstein às 6 da tarde do dia seguinte. Numa frustrada tentativa de remover meu siso direito inferior, cuja raiz estava praticamente colada ao osso da mandíbula, perfurou-me uma artéria, provocando um sangramento torrencial e incontrolável.

Minhas recordações desse dia são pontuais porque fiz questão de tentar apagar o episódio do meu disco rígido. Lembro de sair voando do consultório com a boca entulhada de gaze; o elevador custou a chegar e minha mãe se irritou, gritando um palavrão que nunca mais a ouvi pronunciar. Lembro da expressão assustada do médico do Pronto Socorro quando ele removeu a bandagem e o sangue esguichou, grosso, escuro e quente, encharcando minha camiseta branca. Lembro das luzes frias no teto de um corredor extenso se sobrepondo umas às outras com pressa e o ruído de rodas de borracha contra a impressão de um chão liso, que provavelmente acabara de ser lavado. Lembro do instante imediatamente anterior à morte temporária induzida pela anestesia: tubos, máscaras e holofotes.

À infame piada do Dr. Paulo Tony, só pude reagir com desprezo. Mal sabia ele o trabalho pesado que o aguardava. Quem ri por último, ri melhor, pensei com meus botões. Se a coisa era feia na radiografia, ficou horrenda feita a primeira incisão. O Dr. Paulo Tony pagou a língua e suou a camisa, literalmente, pra consertar aquilo que inconseqüentemente classificou de transviado milagre da Providência. Vencida a primeira tarefa de encontrar o dente e entender exatamente de que maneira acrobática ele havia sido enterrado na minha gengiva pelos brejeiros dedos de Deus, o incauto dentista levou ainda mais uma hora e meia para forjar uma passagem por onde o molar pudesse ser retirado e outros vinte minutos extraindo-o.

Como sempre, livrar-me do meu juízo correspondeu a um processo turbulento e vagaroso. Enquanto trabalhava, o Dr. Paulo Tony tentou puxar conversa, discorrendo sobre futebol e um livro de História da Inquisição que havia lido recentemente. (É bem capaz que seu fascínio pela arte da tortura o tenha levado a escolher a carreira de dentista...) Mas não lhe dei trela por dois motivos: 1. com uma broca, um aspirador e cinco dedos na boca é impossível falar; 2. estava intrigado com esse pensamento: quando extraímos os sisos, é como se alguém trocasse pneus dentro da nossa cabeça.

Enfim, depois de horas de martírio e tensão, a operação acabou e fui despachado para casa com sete pontos na boca pelo vitorioso e exausto Dr. Paulo Tony. Passei a semana à base de sorvete, sopa fria, analgésicos e antibióticos. Minha bochecha inchou como um balão. Fiquei parecendo o homem elefante. A dor fulminou meu bom humor, consumiu minhas energias. Sentindo-me um autêntico bunda, resolvi retomar o Buraco. Vamos ver até quando dura o ímpeto...