25 novembro 2006

polaca


A Constituição de 1937, que inaugurou o Estado Novo, ganhou, à época, o curioso apelido de “polaca”. Uma penca de gente deve saber que a alcunha denunciava a ilegitimidade da carta magna. Getúlio Vargas foi ditador e “polaca” significava prostituta. Mas o que as pobres polonesas tinham a ver com o meretrício no Brasil? Tudo e nada.

Desde o início das imigrações européias, no século XIX, polonesas eram célebres no Rio de Janeiro pela beleza alva e, principalmente, pela didática ímpar com que ministravam aulas particulares de francês. A moda no Império era o Velho Mundo e, em particular, a França. Os refinados barões, marqueses e viscondes, apesar dos títulos tupiniquins, vestiam-se à parisiense e usavam corriqueiramente expressões importadas como “bon soir” e “la vie est une grande merde”.

O nacionalismo exacerbado desse período, em que a nação brasileira era ainda um incerto projeto político, tinha os olhos voltados para o exterior e os pés na cozinha. Além de bens materiais, importavam-se idéias, comportamentos e estéticas que, adaptadas às circunstâncias locais – clima tropical, escravidão e imundície –, traduziam-se em paradoxos tipicamente brasílicos. Defendia-se a liberdade como valor universal, por exemplo, ao mesmo tempo em que a ojeriza racial permeava todas as relações sociais, inclusive aquelas de caráter íntimo. Desejava-se a modernidade num país arcaico. Eis que cariocas disputavam até mesmo a bala a expertise das polonesas, conscientes de que o domínio do francês garantir-lhes-ia prestígio nos meios influentes da Corte. Mesmo os nacionalistas mais exaltados dedicaram-se a aprendê-lo, nesse caso, simplesmente para protestar contra a origem lusitana do português, língua de pés-de-chumbo.

Escolas de idiomas logo se espalharam pela capital. A mais famosa delas pertencia à “Barbada”, mulata que ostentava bigode espesso e cavanhaque e recitava sonetos de Shakespeare num idioma semelhante ao inglês. Um anúncio no Jornal do Commércio, de 1876, informa que o slogan dessa respeitada instituição, parafraseando Júlio Verne, dizia “Mafuá da Barbada – volta ao mundo em 180 minutos”. Apenas profissionais do sexo feminino, estrangeiras, asseadas, comunicativas e dispostas a ensinar aquilo que seus países de origem tinham de melhor faziam parte do corpo indecente, isto é, docente. O Mafuá oferecia cursos regulares de quimbundo, tupi, hebraico, espanhol e, disparado o mais concorrido, francês. As aulas, todas com duração de três horas e nem um minuto a mais, contavam com atividades práticas as quais proporcionavam aos alunos não só o aprendizado da língua, mas também dos costumes estrangeiros. Escravas alforriadas davam aula de quimbundo, índias aculturadas, de tupi, cristãs novas, de hebraico, paraguaias refugiadas da guerra, de espanhol, e as encantadoras polonesas, de francês.

Há quem afirme, muito provavelmente com razão, que a “febre do ménage (corruptela de homenagem, certamente à França)”, como ficou conhecida a famigerada endemia de sífilis crônica que castigou o Rio no verão de 1872, tenha-se originado nas dependências do empreendimento educacional da Barbada. De fato, o campus não era lá muito sofisticado: uma velha casa, com cinco alcovas mal iluminadas e um porão, cujo telhado cedia perigosamente (e afinal despencou no ano de 1880, matando a dona e destruindo para sempre tesouros culturais de incalculável valor), localizada no alegre arrebalde que viria a chamar-se Baixada Fluminense. A rotatividade ininterrupta de estudantes aliada à morbidade dos trópicos nos meses de janeiro e fevereiro roubou o sossego, senão a vida, de muitos cavalheiros aspirantes a poliglotas. Em ambientes fechados e úmidos bactérias proliferam-se como gemidos em baile de carnaval. O inocente espirro de algum aluno enfermo que se tenha recusado a manter-se em sua casa, de repouso, bastou para infectar multidões de admiradores das culturas estrangeiras e, indireta e conseqüentemente, suas esposas e os amantes destas. Como o pânico tende a generalizar-se com impressionante rapidez nas cidades, entre os homens, assim como nos galinheiros, entre as galinhas, a febre do ménage logo aterrorizou a sociedade carioca.

A capital do Império, que ainda não se tornara exemplo mundial de urbanização – não contava com sistemas de saneamento básico, de modo que o esgoto doméstico era despejado diretamente nas ruas estreitas ou então transportado em “tigres” (grandes jarros de cerâmica) até a praia mais próxima e, então, lançado ao mar –, registrou, naquele fatídico ano de 1872, o maior êxodo urbano de toda sua história. Livrar-se dos maus ares do Rio era costume muito comum durante o verão. Aqueles que possuíam meios dirigiam-se a Petrópolis, seguindo o exemplo de D. Pedro II e da família real. Aos desvalidos restava a alternativa de mudar de hábitos, saindo menos de casa e evitando as proximidades do porto, onde, dizia-se, as doenças pegavam com maior facilidade. Nada mais entediante (e emburrecedor), contudo, que a manutenção da saúde.

Atualmente, versa o ditado que macho que é macho faz qualquer coisa em nome da virilidade. No século XIX, quando o Brasil era um país irreconhecivelmente mais inteligente, vide o exemplo de Machado de Assis em contraposição a Paulo Coelho, o dito popular enunciava outra verdade mais edificante: culto que é culto sacrifica tudo menos o prazer da erudição. Apesar da sífilis crônica, a freqüentação do Mafuá da Barbada não caiu. Victor Hugo figurava em primeiro na lista dos best-sellers, e a intelectualidade da Baixada estava ávida para lê-lo no original. As professoras polonesas trabalhavam incessantemente, ministrando aulas de manhã, à tarde, à noite e até de madrugada.

A opinião pública condenou a continuidade das atividades do Mafuá. Em tempos de mortalidade elevada, o moralismo endurece. No ano de 1872, condenou até mesmo os mais sérios centros culturais do Império brasileiro. Jornais promoveram ampla campanha de difamação da Barbada e de suas professoras, além de defenderem a extinção de todas as escolas de idiomas cariocas. Panfletos de autoria anônima foram distribuídos nas ruas tachando lingüistas de “gajas diabólicas que vivem para espalhar o mal” e seus locais de trabalho de “antros de imundície e perversão”. As polacas foram alvo privilegiado do ódio popular, pois, uma vez que dominavam o francês e esse era o idioma da moda, supunha-se que mais pessoas haviam infectado com a temida febre do ménage. O vulgo passou a chamá-las de meretrizes, barranqueiras, gulosas e prostitutas, entre outras coisas vis. Como é usual no Brasil, iniciativas que visam a melhorar as condições de vida e educação da população nascem fadadas à falência.

A injustiça contra as polonesas foi assim imortalizada pela ignorância das massas, entorpecidas pela propaganda “civilista” empreendida pelos meios de comunicação conservadores que se proclamavam “guardiões da civilização e da justiça”. Polaca tornou-se sinônimo de puta. Hoje em dia, quase sessenta anos após a morte de Getúlio Vargas, definir o caráter das pessoas em função de sua nacionalidade é politicamente incorreto e constitui preconceito. Prostituta tornou-se categoria supranacional. Quanto à Constituição brasileira de 1988, apesar de democrática, ela é tão injusta quanto a de 1937. Garante aos cidadãos brasileiros o direito a uma vida digna. Mas como tornar essa garantia realidade num país de filhos da puta?

07 novembro 2006

tocaia


Se alguém me acusar de homófobo, quero que se exploda. Veado gosta mesmo é de tocaia. É impressionante a mania que eles têm de embrenharem-se nos matos e nas moitas dos parques da cidade. São sorrateiros como ratazanas, safados como velhos esclerosados comedores do próprio esperma e dissimulados como toda bicha que se preza.

Na calada da noite, ficam ali, à toa, rondando o passeio público. Uns fingem que estão malhando, entusiasmados com a chegada do verão e, claro, com as proporções dos próprios bíceps, outros vacilam, encostados nos postes com cara de baiacu em coma ou dentro de seus automóveis, manuseando o canarinho afoito. Crescem o olho pra cima dos demais passantes como se também participassem da conspiração voluptuosa e imunda que passaram o dia a fantasiar. Acreditam que algo extraordinário pode acontecer. Nada lhes parece mais romântico que uma barrela na trilha: mãos no cascalho, joelhos na relva e rabicó em chamas; merda diluindo-se em sangue e suor enquanto a vítima do estupro consentido alivia-se.

Qualquer gesto involuntário um pouco mais brusco do pedestre incauto será interpretado como resposta afirmativa pelos pervertidos de plantão, como se fosse um código secreto. Em suas cabeças desmioladas, coçar o nariz ou enxugar a testa, por exemplo, equivalem às seguintes palavras de amor e doçura: “vem cá e me prova que você chupa até o caroço”. Qual será o fetiche de copular com estranhos no bosque? Trata-se de bucolismo vampiresco? Será que proporciona frio na barriga correr o risco de atracar-se com soros positivos? É o risco de ser visto que torna essa prática estimulante? Ou será a possibilidade de revisitar Sodoma e Gomorra em pleno parque do Ibirapuera ou Cidade Universitária, se, de repente, todo mundo resolver soltar o frango?

Não entendo mesmo o que se passa. Só sei que, mais de uma vez, tive de reprimir tipos assim durante minhas corridas noturnas. Guarda a piada, imbecil, e engole o sorriso. Tenho estudado o dia todo pra concluir (Deus esteja comigo) o curso de História. Só me sobra tempo pra fazer exercício tarde da noite. Enfim... Você, que insiste em contrariar o que digo, tentando forçar piadas totalmente sem graça a respeito da firmeza da minha predileção sexual, que vá pra puta que o(a) pariu. Não estou com paciência pra isso hoje. Se pudesse me ver, flagraria no meu semblante a mesma expressão de repúdio ameaçador que sou obrigado a vestir quando um desses veadinhos franco-atiradores resolve mirar-me por detrás do famigerado “sorriso mole”. Duas expressões em latim deverão iluminá-lo: mens sana in corpore sano e me cagus un caralium.

Não tenho absolutamente nada contra o homossexualismo, que fique claro. É de domínio público que o sangue da minha nobre linhagem é um verdadeiro bas fond, onde os genes femininos pululam como Marias sem vergonha em beira de brejo. Nem sempre há espaço pro Y no código genético dos meus parentes. Aliás, o mais comum é que esta seja a situação: X X X X X X X X y X X X. Porém, quando ele está presente, sai de baixo! O chumbo é grosso, colega! Dizem que meu tetra-tataravô Alfonso Pinheiro de Amorim Cortez, um dos capitães de Santo Amaro no tempo em que o bairro que conhecemos hoje superava em muito a população da provinciana São Paulo de Piratininga, tinha três testículos. Era tão macho, mas tão macho que, quando passeava pela vila, até mesmo o vento dobrava a esquina para não esbarrar nele. Quando a anomalia veio a ser conhecida de todos os respeitados cidadãos santo-amarenses, por meio de um escândalo envolvendo a negra Carmelita, dama de companhia de minha tetra-tataravó Iolanda, assassinada com dois balaços de arcabuz em circunstâncias até hoje obscuras, vovô Fonsinho fingia que não era com ele. Jamais permitiu que tocassem no assunto na sua frente – o português do armazém quase ficou caolho como Camões por conta de um gracejo infeliz –, mas sentia o mais profundo orgulho daquele respeito absoluto que impunha (e também de sua abastada pochete, é óbvio). Afagava-lhe a virilidade na mesma proporção em que me irritam os veadinhos atrevidos adoradores de Pã que povoam os parques à noite.

Alguém que possa oferecer-me explicações, por favor faça-o logo. Na USP, "as mocinhas" costumam aglomerar nas imediações do prédio da Física. Lá há um bosque onde as crianças inocentemente brincam nas manhãs de domingo. Não me surpreenderia nem um pouco se um dia uma menininha, lambuzando-se gulosamente, convidasse a mãe a compartilhar o chup-chup de leite condensado que achou perto do escorregador.

Essas coisas acontecem. Por isso, essa mania de putaria em parque deve acabar. É indecente, intimidador e imundo – isso soma três I’s: III, como CCC e KKK; por pouco, não corresponde também a SS. Mas deixo o totalitarismo e a violência para os imbecis. Quero mesmo é que se foda.