11 julho 2006

modernidade

A modernidade está em ruínas desde o século XVI. Camões produziu numerosos versos sobre o desconcerto do mundo. Também Shakespeare, através de Hamlet, refletiu sobre decadência do seu tempo e sobre o prodigioso comportamento humano, capaz de camuflar a essência dos gestos em aparência distinta, furta-cor. Assim como o príncipe da Dinamarca, o Dom Quixote de Cervantes também padecia da deficiência visual típica dos modernos: atestava a lucidez das suas ações não a realidade objetiva, mas a lógica impecável, ainda que completamente absurda, por trás delas. A Renascença descobriu o indivíduo.

De lá pra cá, as coisas mudaram um bocado. Mas o mundo continua de ponta cabeça; só que piorado. Depois que a humanidade inventou a cultura de massas, a filosofia virou motivo de pilhéria. Ao invés das “grandes obras”, o que estimula nossas reflexões existenciais hoje são os livros de auto-ajuda e a imprensa marrom. O campeão de vendas das livrarias brasileiras do último mês: “Quem mexeu no meu queijo”, de autoria de um PhD cujo nome, como os medicamentos genéricos, tanto faz. A capa da revista semanal de atualidades de maior circulação dessa semana: “Como se tornar um grande líder”.

É cristalino como a água que os capitalistas do século XXI estão cada vez mais produtivos e profissionalmente eficazes na mesma proporção em que se assemelham cada vez menos a seres humanos. A nobre invenção dos modernos renascentistas, o indivíduo, evoluiu apenas para revelar que livre arbítrio é o nome poético para a má índole em atividade. O egoísmo é hoje tecnologia de ponta; já as conversas amistosas e o tato nas relações pessoais viraram história. Por isso, os manuais de etiqueta atuais não versam sobre bons modos – tentam educar o espírito neolítico do homem contemporâneo.
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Quatro anos de ensino superior servem para ensinar jovens a ganhar dinheiro e também para esmagar os sonhos coletivos. A estupidez está estampada nas bancas e livrarias e vende aos borbotões. Mas os psicólogos norte-americanos e os jornalistas, intelectuais de grande monta, zelam pelo futuro do mundo. Graças a Deus, há sempre um bunda de plantão para cagar a regra de como as coisas devem ou não ser.

04 julho 2006

tarde de primavera

Todo bundão é individualista por natureza. Individualista – por motivos de economia verbal, usa esse termo no lugar da expressão “o chato que chora quando são contrariadas as suas vontades” para explicar a si mesmo a sua incapacidade insuperável de se relacionar. A consciência só se arrisca no terreno da auto-análise naqueles trágicos intervalos do dia-a-dia em que a depressão torna-se a heróica saída para a mediocridade. O bundão não só é desprezível como tem pena de si mesmo. Durante a infância é mimado, durante a adolescência é niilista – e, não raro, apresenta tendências suicidas –, quando adulto, sua boca dispara críticas contundentes – bem fundamentadas até – contra tudo e todos, enquanto seu espírito amarga estar sempre aquém do Éden prometido pela sua pretensiosa e mirabolante fantasia e, finalmente, na velhice, revela-se homem ranzinza e dono da verdade.
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Aos 76 anos de idade, num apartamento opaco do Real Parque – o único bem que lhe restou das dívidas acumuladas no banco – o bundão falece sozinho no seu quarto de dormir em plena tarde de primavera. Seu corpo só é descoberto três dias depois do óbito, quando já começa a exalar o espesso perfume da morte. A causa? “Derrame cerebral, ataque cardíaco, velhice, desgosto”, comentam os vizinhos indiferentes, mas morbidamente curiosos. “Até que ele era simpático quando chovia...” Mas no velório comparecem somente os parentes mais próximos e aquele único amigo diplomata cuja homossexualidade a vida inteira cegou-o para o fato de que o bundão nunca passou de um bundão que nunca amou ninguém além de si próprio.
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Outra característica muito comum ao bundão é a teimosia. Mete-se a praticar atividades coletivas somente para estragar a festa de todo mundo. Quantos jogos de futebol, por exemplo, não foram suspensos repentinamente porque o dono da bola, bundão da primeira divisão, irritou-se com um lance polêmico e decidiu – por todo o time e pelo adversário – que o campeonato não valia mais a pena? O videogame do bundão é sempre o mais moderno do condomínio porque é também o seu melhor amigo; não existem coincidências fabricadas pelo acaso.
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O bundão cresce, mas não amadurece. E a mania de contrariar as evidências da natureza, essa virtude típica dos anti-heróis que se chama teimosia, persiste. Chega um tempo em que descobre que sua verdadeira vocação é a arte. De todas as modalidades já inventadas, escolhe justamente a mais antiga e fora de moda: o teatro, irremediavelmente coletivo e pouco prestigiado nas plagas brasileiras. O bundão é afeito a encrenca... Além de lidar diariamente, nos ensaios, com um problema, a sociabilidade, que é na verdade uma miríade de problemas, os outros, a recompensa de se ver nacionalmente reconhecido pelo público e pela crítica nunca passará de mera ilusão. Paradoxal e polêmico, não sabe ouvir ao mesmo tempo em que tem a constante impressão de que a sua opinião é sempre a mais original e valiosa. Os outros atores que se rachem! Certa vez, um grande gênio do metier confidenciou-lhe que a gente é feita para brilhar, como as estrelas. “O spotlight só pode iluminar o talento de um único artista”, confirmou o bundão embevecido de vaidade e ambição, louco para brilhar. Seu projeto de vida é ser Deus na Terra – alimenta a silenciosa expectativa de que a fama vai redima-lo da solidão. Não precisa de parceiros, só de competidores. Importa menos o percurso que chegar em primeiro. O bundão não possui o dom primário da brincadeira em grupo, mas, teimoso, insiste. Sem o saber, alimenta o desprezo alheio e encaminha-se para aquele suicídio moroso que culmina com a breve nota no jornal de domingo:
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André Souza Machado Cortez, aos 76 anos. Deixa irmã e sobrinhos. Não deixa saudade.