29 abril 2009

TOQUE

A síndrome do Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOQUE) corrói o cérebro da classe média. Trata-se do mau gosto nos mínimos detalhes. Em tudo o que põem a mão há um toque de refinamento. Por exemplo: a mania de converter nomes mundanos em criações literárias de banca de jornal. Se a fulana tivesse nascido em berço esplêndido – ou de pais minimamente ilustrados no bom senso –, chamar-se-ia Carolina ou Adriana ou Mariana. Como nasceu no subúrbio da cidade grande, numa daquelas casas subtraídas de quintal, cujos portões invadem o passeio público para dar lugar à traseira do carro do ano, financiado em 36 vezes, atende pela graça de Caroline, Adriane, Mariane. A mãe, obesa e loira, excluídas as raízes dos cabelos, e o pai, tatuado, fortinho&foda, escolheram o nome por conta do verniz, como se os sufixos -ane, -ene e -ine denotassem estirpe e fossem muito comuns na literatura francesa do século XIX. A menina cresce idolatrando Xuxa e todos os Genéricos congêneres: Angélica e Eliana na versão infantil, Adriane Galisteu e Luciana Gimenez na versão adulta e Hebe Camargo e Ana Maria Braga na versão senil/esclerosada. Dá escândalo no shopping sempre que passa diante de uma vitrine e identifica o mais novo modelito de sandália assinado por qualquer uma de suas ídolas. A mãe, que não gosta de fazer feio nos almoços familiares de domingo, geralmente realizados na choperia do bairro, ao sabor de galeto de frango, tampouco resiste a comprar o acessório de plástico rosa (no cartão de crédito do marido) para embelezar a filha. No fim de semana, a felicidade vem em dobro: a mãe mostra que não só entende de moda como pode pagar por ela e a menina, fantasiada de boneca de luxo, interpreta, para os parentes e para as demais pessoas presentes no restaurante, a última canção de Ivete Sangalo. Do outro lado da mesa, a madrinha, orgulhosa, bate palmas e comemora, “parece uma atriz mirim!”. O toque pode representar a decadência mais prosaica e feliz. Caroline e Adriane e Mariane cumprirão seu destino e tornar-se-ão putas, senão de fato, pelo menos de espírito.

07 abril 2009

bunda is back!


De fato, Bunda is back. O novo textículo ficou apenas um fim de semana no ar, e já tenho o prazer de degustar um comentário - breve, mas elogioso. Ora, todos gostamos de ser o centro das atenções. Em particular os bundões, que, se não se expõem ao ridículo, ao escárnio de todos, passam integralmente despercebidos, como aparelhos de TV em tardes de domingo. Bundões falam sozinhos, para as paredes. Prestar-lhes atenção é o mesmo que notar algo fora do lugar ou fora de sintonia. Saudações a todos que voltam a se aventurar neste buraco negro.

Passei o almoço de hoje em estado de autismo. Fui convidado pela minha chefe para sentar à mesa junto com funcionários de terceiro e quarto escalões do Ministério vizinho ao nosso e de uma das agências governamentais sediadas no Rio. Predominaram conversas relacionadas a processos burocráticos, ponderações acerca do papel do Estado como fomentador de micro e pequenas empresas e os habituais gracejos sobre a canalhice que corre solta nos Poderes Legislativo e Judiciário. Acompanhei esses tantos assuntos do mesmo bunker de onde degustava, com perplexidade e desconfiança, a comida natural que rendeu ao cardápio do restaurante o direito de ostentar preços, no mínimo, indecentes. Brasília é uma cidade no litoral do lago Paranoá - daí a mania carioca de saúde, magreza e pele cor de cenoura. Restaurantes naturais fazem bastante sucesso nesta praia. Prosperam. Fui incapaz de me engajar na conversação que se desenrolava diante de mim. Já experimentei sensação semelhante no teatro, ao assistir a peças que não me disseram nada ao espírito. Não é por falta de compreensão do que está sendo dito. Tem a ver com uma modalidade de tédio que não é bem tédio, mas completo desinteresse por aquilo que eu poderia dizer caso quisesse dizer algo. Melhor olhar através das palavras, decifrar os pensamentos e as neuroses que os dedos e os ombros das pessoas não sabem camuflar.
Escritores são retratados como autistas nos filmes porque escrever exige mesmo um bom bocado de autismo antes da labuta com a caneta e o teclado. Na vida real, porém, compartilhar refeição com alguém assim é disperdiçar uma hora e meia do dia na companhia de um completo babaca. Não se fazem mais literatos como na ficção de antigamente, apenas bundões e prepotentes orgulhosos.

Acordei do transe quando o garçom me abordou com a máquina do Visa e com a informação de que lhe devia 44 reais e 70 centavos, com serviço. Paguei no crédito para não ter que me deparar com trouxinhas de berinjela recheadas de
cream cheese (crim xisi) e tomate seco até o mês que vem.

04 abril 2009

a volta do malandro


Nesta vida, o tempo passa rápido. Lá se vão dois anos desde o último textículo. A natureza, no entanto, é estática. Como rezam o ditado e a empolgante canção da ex-banda de Carla Perez: pau que nasce torto, nunca se endireita. Tornei-me servidor público; “alto funcionário” do Governo federal. Tenho um salário e uma rotina em Brasília. Burocrática, sem dúvida, mas enfim posso dar-me o luxo de ir ao supermercado e comprar queijo maasdam e vinho do Porto, dois caprichos que outrora me custavam o dinheiro que não tinha. Meus amigos agradecem imenso - finalmente tenho para custear a cerveja de quinta-feira. Aqueles que se diziam amigos não perdem a oportunidade de cobrar-me antigas dívidas que a verdadeira amizade teria tratado de prescrever. Que seja - quem não teme, não deve. A tão almejada estabilidade financeira, situação gozada apenas pelos definitivamente empregados - carteira assinada e dinheiro aplicado -, chegou. Todos os dias, saio de casa engravatado para o trabalho. Por baixo do terno e do orgulhoso aspecto típico dos recém admitidos diplomatas, misto de executivo prodígio com intelectual humanista, o bom e velho bundão. Como disse, a natureza das coisas e das pessoas não muda. Nem perdoa.


Acabo de regressar do primeiro ensaio daquele que virá a ser o mais irreverente bloco carnavalesco de Brasília. Os chegados da repartição tiveram a espirituosa idéia de lançar uma banda de sambas e marchinhas para tornar a idéia de estar condenado à Capital Federal para o resto da vida profissional menos insuportável. Produzimos um barulho terrível, mas bastante animado para uma tarde de sábado chuvosa. Unidos pela alegria e pela batucada, tomamos muita cerveja e comemos muito fandangos. A diversão pode ser simples como bater papo à varanda da casa, diante da piscina com cascata e do jardim meticulosamente aparado. Começo a entender o prazer de alguns em passar a tarde com os amigos da faculdade, diante da grelha em brasas e imerso no dialético debate sobre a santa trindade - mulheres, futebol e cachaça. Afinal, participar de uma banda de samba me torna mais um partícipe daquele abominável universo mental do playboy da Zona Oeste de São Paulo? A princípio, sim. O Rio de Janeiro, porém, há de redimir-me.


O Presidente do bloco, alcunhado “Eternos nesta Brasila” por conta de um vídeo que há muito circula no youtube e retrata um jovem ator global, astro de malhação, dizendo abobrinhas durante festa da high society brasiliense, enriquecida por meio de esquemas de grilagem e corrupção, é carioca. Cariocas também são os homens do tamborim, do pandeiro e do surdo. Ora, se Vinícius de Moraes chamou São Paulo de túmulo do samba não foi à toa. O samba nasceu com o Rio de Janeiro: a cidade é a pátria de todos os mestres desde Noel. O que seria do Bola Preta no fogo cruzado de motoboys da Avenida Paulista? O que seria da Banda de Ipanema na Marginal, desfilando loucura às margens do Rio Pinheiros? Quando um grupo de playboys paulistanos reúne-se com pretensões carnavalescas não se pode esperar mais do que uma solução trivial para cativar a atenção daquelas menininhas que se formaram no colégio junto com eles, mas ainda não foram fisgadas pelo anzol dourado do casamento perfeito. Aqui a coisa é distinta. Meu recente envolvimento com o tamborim explica-se pela empolgação coletiva e de sotaque inconfundível que marcou um almoço de sexta-feira há algumas semanas. Participar do bloco é quase um pressentimento, como tantos outros que vez ou outra perturbam meus pensamentos. Em fevereiro do ano que vem, espero celebrar meu último carnaval no Brasil antes de uma longa década de trabalho e reflexão no exílio. Que seja ao som do tamborim e entre bons amigos sambistas de verrrdade.