27 setembro 2010

censo comum


Na semana passada, havia um aviso no elevador do prédio anunciando que a recenseadora Raquel se encarregaria de entrevistar os moradores do meu bloco. O aviso não indicava data nem horário. Apenas informava que Raquel tocaria a campainha de casa, devidamente uniformizada e cheia de dúvidas Dizia, também, que era obrigação de todo brasileiro responder corretamente às perguntas do censo, pois, agindo assim, corretamente, estaríamos contribuindo para construir um futuro melhor para o Brasil.

Esperamos a semana toda pela Raquel. A campainha nunca soou. Na sexta, havia um bilhete na caixa de correio: "o(a) recenseador(a) __
Raquel____" havia tentado nos encontrar pelo menos duas vezes sem sucesso. "Ela" pedia a gentileza de telefonarmos para para marcar a data e o horário de sua visita. Voltaria especialmente para nos entrevistar. Segundo o bilhete, era obrigação do(a) recenseador(a) visitar todos os moradores da área para a qual havia sido designado(a). Ninguém poderia ficar de fora.

Ligamos para a Raquel ontem de manhã. O telefone tocou uma, duas, três, quatro, cinco vezes. Quando a moça finalmente atendeu, sua voz parecia emergir dos subterrâneos do sono. Disse-lhe meu nome e expliquei quem era. Ela demorou a entender, como se a consciência não estivesse desperta o suficiente para distinguir sonho de realidade. Provavelmente estava de ressaca. Falava arrastado, com dificuldade de articular, o que me pareceu um claro indício que sua língua estava colada aos dentes e às paredes da boca. A saliva, na seca de Brasília, reage com o álcool e produz uma espécie de goma. Mesmo certo de que Raquel teria um dia de merda pela frente - outro efeito colateral do porre brasiliense é a cefaleia lancinante -, sugeri que nos encontrasse em casa, às 14:30. Ela titubeou, concordou e despediu-se com algo semelhante a "enthão, athé de tharde".

Depois do almoço, à espera do censo, deliciei-me com o editorial do Estadão, sentado despoticamente no trono de louça que promove a igualdade entre os homens. Amo a ironia. Mas as páginas seguintes ao mais recente achincalhe à falta de escrúpulos do petismo estragaram o momento, noticiando uma sequência de fatos lamentáveis, como de hábito: a) uma quadrilha de lobistas e políticos corruptos, incluindo o Governador, fraudaram uma licitação milionária no Tocantins; b) os meios de comunicação foram proibidos de divulgar o caso por conta de uma liminar expedida por um desembargador filha-da-putamente obtuso; e c) várias entidades de representação de classe - excluídos os sindicatos pelego-lulistas - protestavam contra os ataques à liberdade de imprensa. Foi o impulso que necessitava para fechar o jornal, higienizar os abismos do corpo, escovar os dentes e bater papo enquanto aguardávamos Raquel.

Ao invés da campainha, soou o telefone. Raquel informou que já havia visitados todos os moradores da 105 sul menos a gente e que, portanto, julgava desnecessário perder tempo conosco. Ela obviamente não estava interessada em construir um futuro melhor para o Brasil. Devia ter acabado de concluir que o vale coxinha que andava recebendo do IBGE não valia a caminhada (e a náusea) debaixo do escaldante sol do cerrado. Perguntei se aquela omissão não caracterizaria algum tipo de "improbidade administrativa" e se a pesquisa não seria prejudicada. Não foi a resposta. Insisti: "tem certeza? Imagine se uma casa a cada quarteirão for ignorada, será que nem assim teríamos um problema?". A reposta foi um não um pouco mais elaborado: "qualquer coisa, a gente completa com a imaginação". E desligou.

Descartado pelo censo como estrume, percebi que ingressava numa das minhas experiências negativas. Um bunda, tão insignificante que não merece nem ser entrevistado pelo censo. Não parece fazer parte das estatísticas brasileiras. Um nada. Moribundo, começava a dar voltas no vicioso círculo da baixa auto estima.

Acontece que aprendi um bocado desde que resolvi perder tempo relatando episódios cinzentos do cotidiano. A maturidade é o momento na vida do burguês em que ele aprende a barrar o princípio de depressão sem a ajuda do zoloft. Bastou refletir um pouco e concluir que Raquel era preguiçosa. A preguiça, versa o censo comum, é a mais brasileira das virtudes.

22 setembro 2010

renascido das fezes

Tenho certeza que o leitor já ouviu falar da Fênix, a ave de fogo que, na mitologia grega, renascia das cinzas. É uma bela metáfora sobre a força e sobre a capacidade do homem de se adaptar às circunstâncias "sem deixar a peteca cair". O Bunda é como a Fênix - um idiota de plantão que, no oco digital do universo, renasce das fezes. Um renascimento sem a mesma beleza lírica, mas igualmente surpreendente.

Renasci, mais uma vez, para detonar a miséria de espírito, a pobreza intelectual, as lambanças que tornam este nosso Brasil uma eterna promessa de futuro e, agora também, a burocracia latu sensu. Voltei, embalado por um grupo de amigos que decidiu se unir para formar uma confraria de escritores em potencial. Ainda não tive a capacidade de me inscrever no e-group criado por eles, mas um dia chego lá. Por meio do facebook soube que um dos nobres quase-literatos leu o primeiro post deste Buraco e ficou bastante impressionado com o veneno com que pintei um retrato íntimo da classe média. Para quem não se recorda, o primeiro textículo do Buraco tratava de maus hábitos anais: papel higiênico, água fria, repúdio ao próprio corpo e contrastes entre aparência e essência. Tenho de admitir que fiquei bem feliz em ser citado num veículo de comunicação tão eficiente quanto o facebook. O fato me deu ganas de voltar a escrever. Prometo (tentar) não deixar a peteca cair de novo.

Todo escritor precisa evoluir na sua arte. Todo amador também. O assunto de hoje não é a classe média, mas a "classe burocrática" de Brasília. A burocracia da capital federal é dividida, grosso modo, em cargos de confiança e funcionários de carreira. Os primeiros são as indicações políticas (DAS) e os outros constituem a categoria dos concursados. Muita gente da turma do DAS veio de São Paulo. Estudaram no Largo São Francisco ou na PUC. A maioria formada em Direito, alguns em economia, relações internacionais e ciências sociais. Lembro-me bem de uma eleição, há alguns anos, quando nosso saudoso Maluf concorria a prefeito. Os setores ilustrados e os setores engajados da "sociedade" se aliaram para desbancar a candidatura do turco ladrão. Foi um momento de epifania democrática na efervescente vida política da zona oeste de São Paulo. Todos juntos contra um inimigo comum. Diferenças "ideológicas" deram lugar ao consenso, e se alguém diminuisse o volume das conversas nos bares da Vila Madalena, era possível ouvir as vozes e os violões de Chico Buarque e Geraldo Vandré embalando a moçada. Ridicularizava-se o argumento fundamental do malufismo - o princípio do rouba, mas faz -, invocando a ideia weberiana de que a atividade política é vocação e não um meio de enriquecimento ilícito. Os setores engajados da "sociedade", arautos da verdade, praticamente-inquisidores, eram os mais veementes críticos da falta de ética no exercício do poder. Estufavam o peito e enchiam a boca para escarafunchar o furúnculo da corrupção.

A imprensa brasileira foi recentemente inundada por denúncias de tráfico de influência e nepotismo contra a Ministra da Casa Civil, Erenice Guerra. O Governo acusou os meios de comunicação de conspiração. A ex-Ministra e Chefe há quinze anos de Erenice, Dilma Roussef, afirmou que "é impossível saber o que todas as pessoas da família fazem", eximindo-se de responsabilidade sobre os delitos cometidos debaixo de sua narina. Algumas publicações rasteiras, em nome da neutralidade jornalística, lançaram reportagens acusando outras publicações também rasteiras de praticarem mau jornalismo, desinformando o público a respeito dos fatos para favorecer a oposição, liderada pelo "candidato tucano e seus demos". A turma do DAS, cujo núcleo duro é o setor engajado da "sociedade", faz coro com tais veículos e, ao invés de apresentar provas que desmintam as denúncias, defende o Governo com base em acusações. Fazem-no com vapor nas retinas e a voz exaltada, a poucos centímetros de perder-se no grito - algo parecido com o que deve ter sido o autoritarismo bolchevique. O "argumento" que mais tenho ouvido é este: "em 98 o PSDB pagou para aprovar a lei que permitiu a reeleição do FHC".

Vamos lá... De minha parte, adoro discutir política, apesar do estresse que esse tipo de discussão provoca. Sou contra a Dilma e contra o PT, ponto final. Faço questão de dizer isso logo de cara. É a deixa para o interlocutor supor que sou tucano ou democrata-demoniáco. Petista tem mania de perseguição, não sei por que. De imediato, surgem argumentos do tipo "em compensação", como o mencionado há pouco. CAGUEI E ANDEI para o PSDB. Quero apenas que me apresentem argumentos convincentes para confirmar o partidão, corrupto e aliado de figuras deploráveis como Sarney, Renan Calheiros e (até hoje fico pasmo) Fernando Collor de Melo, no comando do País por mais 4 anos. Há muitos outros canidadatos além do vampiro. Há, inclusive, uma candidata de origem simples e que, ao contrário do nosso atual Presidente, redentor dos oprimidos, orgulha-se, e muito, da sua educação formal. Digo isso tudo e recebo o seguinte argumento: "dos males o menor". Ou seja: o vampiro é ladrão, a criacionista é despreparada (e crente) e a Dilma, apesar de sua assessoria corrupta, é a solução. Tem cabimento? Não tem.

O ponto onde quero chegar é que a turma do DAS e grande parte do setor engajado da "sociedade" queima a língua, renega o passado e ofende a ética. Votar no PT hoje é, fundamentalmente, igual a votar no Maluf, algo que nos idos da década de 1990 era deplorável, punido no sétimo círculo do Inferno. Prevalece na cabeça do eleitor petista o velho e tosco bordão do turco bandido: "rouba, mas faz". É uma pena.