12 outubro 2010

sala de embarque


Amanda e Paulinho namoram há dois anos. Já adquiriram avançado grau de intimidade. Trocam beijos de língua entre garfadas de pizza nas noites de domingo. Viajaram juntos para Itacaré e Bariloche e agora estão a caminho da Europa, ambos pela primeira vez, nova e eternamente juntos, até que a morte os separe. Chegaram ao aeroporto com duas horas de antecedência. Dona Sílvia, mãe de Amanda, adora um aeroporto. Gosta de se imaginar sentindo a ansiedade das pessoas prestes a perder o voo e gosta mais ainda de olhar a vitrine da butique que, entre outros artigos importados, vende perfumes franceses e óculos escuros da Prada. Arrastando o marido, Afonso, por entre prateleiras e prateleiras de muamba, deixa escapar frases como "ai, Fon, essa camisa ficaria linda em você" e, logo em seguida, como se apenas desse asas à imaginação, "e esse óculos? Imagina a gente chegando no clube para almoçar, você com a camisa e eu de óculos novo...". Ele sorri e desconversa, o olhar perdido na vendedora de produtos de beleza femininos. "No exterior é mais barato", argumenta, "vou lhe dar de presente quando formos pra Nova Iorque". Saem da loja de mãos vazias e a cabeça borbulhando de devaneios - sonhos de consumo e flashes de filmes pornô.

Amanda e Paulinho os esperam diante da entrada para os portões de embarque, ela pendurada nele, fazendo o gênero venho-tanto-a-Cumbica-que-nem-vejo-graça. Emburrada, cumprimenta os pais com um amistoso "aonde é que vocês se enfiaram? Estamos plantados aqui há vinte minutos!". Para orgulho dos progenitores, foi tratada desde pequena como o centro do mundo: "estudou em colégio particular e levou duas empregadas à loucura", gabou-se uma vez Dona Sílvia. Justificando-se, derretida, a mãe enfatiza a primeira sílaba do vocábulo importado, "a fila
check in estava enorme. Pensamos que ia demorar". Amanda desacredita, bufa e o genro contemporiza, aproveitando a deixa, "olha lá, amor, depois você reclama que está com saudade da comidinha dela". O sogro ri da piada e toma a iniciativa da despedida. Abraços, beijos, divirtam-se, promessas de presentes e o casal desaparece. Ainda acenando em vão, Dona Sílvia apaga com o lenço uma furtiva lágrima - o clímax de uma ópera suburbana.

Diante do portão de embarque, o casal depara-se com a multidão de brasileiros que contamplam a atordoada movimentação dos funcionários da companhia aérea. Amanda se desanima. Não havia espaço para gente feia nos sonhos recorrentes das últimas semanas. A decepção se mescla à irritação, "ai, que povinho feio", e Paulinho come a bronca, "se você tivesse aquele cartão preto a gente esperava na sala vip e não no meio desse monte de jean charles". Acostumado com os rompantes da esposa, limita-se a apontar para dois assentos vagos, "ali tem lugar. Vem sentar, amor". Aos seus olhos apaixonados de novela das seis, a miséria de espírito se confunde com a graça das crianças que protestam por um pouco de carinho. Senta-se e acomoda a bagagem de mão ao seu lado. "Toma cuidado para não encostar nessas sacolas imundas, Paulinho", recomenda Amanda. Cumprindo a instrução, recosta a cabeça no ombro dela. Ficam em silêncio, contemplativos.

Uma ideia numa cabeça acostumada com pagode e kinoplex tem duração breve, pouco mais de 2 minutos. "Deixa eu ver as espaldas do urso", sussurra Amanda ao ouvido do maridão. Paulinho inclina o corpo para frente, permitindo que ela levante a camisa e examine suas costas. "Com cuidado para não machucar, amor". Amanda coloca os óculos de grau e inicia a cirurgia. "To com água na boca", confessa enquanto espreme uma espinha cor de manteiga. Saca uma caixa de lenços da bolsa e limpa as unhas dos polegares antes de cavocar a omoplata de Paulinho, em busca de um pelo encravado. "Ai, ai, amor!", protesta Paulinho, afastando as costas das mãos da algoz. "Calminha, urso, que a coisa aqui tá feia. Vem com a mamãe". Ele exige uma bitoca antes de se doar novamente ao tédio churdo da esposa. Amanda segue firme na limpeza. Prende a língua entre os dentes e aperta os olhos em momentos mais críticos. Paulinho esboça uma expressão de dor e logo volta a ruminar um devaneio obscuro.

Dez minutos depois, uma aeromoça finalmente anuncia o início do embarque. "Ufa. Vambora, amor, que atrás vem gente!". Os dois se apressam para não perder um bom lugar na fila. As férias estão só começando e o velho mundo os espera.

06 outubro 2010

7 de setembro


Ontem, lembrei-me de uma pouca e boa deste nosso Brasil. Mas antes de contar devo me desculpar pela demora em escrever. Acontece que as discussões políticas no facebook estão em alta, e não consigo conter o ímpeto de comentar certos comentários irônicos e superficiais. Para usar uma analogia digna do nosso Presidente Lula, política em tempo de eleição pode ser como jogo de final de campeonato. Mas vamos ao fato...

De todas as capitais brasileiras, a capital do Brasil, este alphaville chamado Brasília, deve certamente possuir o título de melhor parada militar do País. Nunca tive a oportunidade de exercitar o espírito cívico numa manhã de sete de setembro brasiliense, mas, a julgar pela quantidade de pacotes de salgadinho e latas de refrigerante abandonados na rua, o evento deve ser bastante concorrido. A preparação do desfile começa com pelo menos duas semanas de antecedência. Nas duas margens da avenida que corta o lado esquerdo da Esplanada são armadas arquibancadas de metal. O módulo central, bem em frente ao Ministério da Defesa, é reservado ao Presidente da República e seu séquito de ministros, generais, almirantes, brigadeiros e demais aspones. Tiras de tecido verde e amarelo são amarrados aos postes de luz, do Planalto até a rodoviária. A Brasília se enche de uma beleza patriótica que faria marejar os olhos de qualquer anarquista.

Ao que parece, todo ano, a Presidência formaliza convite a uma autoridade estrangeira para participar do desfile como convidado de honra. Ano passado, quando a França era a nossa melhor amiga, convidaram o Sarkozy, e os caças supersônicos RAFALE rasgaram o céu do planalto central. Sobrevoaram a minha casa, obrigando-me a levantar antes das nove. Zuniam como balas, deixando atrás de si rastros coloridos - vermelho, azul e branco, as cores da liberdade, da fraternidade e da igualdade, e verde e amarelo, as cores do carnaval nos trópicos. Como a grande maioria das pessoas, fico ranzinza quando sou acordado em finais de semana e feriados. Talvez por isso tenha aberto a janela, olhado para o céu, coçado a bunda e pensado laconicamente, "aviões... rastros de merda... viva..."

Este ano, novamente, cabulei o desfile do sete de setembro. Às cinco da tarde, quando o movimento na Esplanada já tinha se reduzido ao voo rasante do lixo ao vento - paisagem que poderia ser o cenário de um filme de faroeste futurista -, arriscamos fazer uma visita ao Museu da República. Para quem não sabe, aqui na capital existe uma praça chamada Conjunto Cultural da República onde estão instalados a Biblioteca Nacional, o museu mencionado há pouco e uma espécie de tampinha de concreto, em que, tudo leva a crer, Niemeyer planejou a instalção de um café ou restaurante. À imagem e semelhança do Memorial da América Latina, o Conjunto Cultural da República é um mar de cimento salpicado de pequenas manchas negras que um dia, na boca de adolescentes, foram pedaços de babalu e ping-pong. No clima desértico do cerrado, uma visita ao museu ou à biblioteca pode custar ao curioso uma
insolação. A temperatura na praça deve ser pelo menos cinco a dez graus mais elevada que a do resto da cidade. O Conjunto Cultural da República é uma chapa de zinco quente. Niemeyer talvez tenha adequado o projeto à insônia durante a qual foi concebido: um local para ser visitado apenas à noite.

O tema da exposição em cartaz era a arquitetura pós-moderna japonesa. Estávamos bastante animados para apreciar as lendárias soluções nipônicas para a falta de espaço. Quase cegos pelo reflexo do sol no solo lunar do Conjunto Cultural da República, adentramos a sombra da rampa que dá acesso ao segundo andar do Museu. Diante da entrada do térreo, havia dois guardas batendo papo e, atrás deles, uma porta de vidro filmado cerrada. Os dois estavam sentados sobre cadeiras de escritório que me chamaram a atenção justamente por serem do modelo genérico - assento giratório, com rodinhas - e estarem completamente fora do lugar. Por um breve instante, tive a sensação de contemplar o mictório surrealista de Duchamp.

"Boa tarde", disse um deles ao perceber nossa presença. "Boa tarde. A exposição?". O homem tirou o boné e coçou a cabeça suada, "infelizmente está fechada hoje". Contestei, "mas hoje é feriado". Ele confirmou, "justamente. Hoje é feriado e junta muita gente na parada militar". Sem compreender o comentário, indaguei, "e daí?". Ele riu, "e daí que ano passado a gente abriu no sete de setembro e o museu encheu de gente". Ainda sem entender, insisti, "e daí?". Ele riu novamente e com um sorriso pacífico de interior de estado no rosto, concluiu, " e daí que só nós dois não damos conta de tomar conta de tanta gente aí dentro".

Resumo da ópera: no dia 7 de setembro, data em que todo mundo está de folga e se dispõe a visitar o plano piloto para comemorar a data nacional, o Museu da República estava fechado. A justificativa: "junta muita gente". O Brasil que me desculpe, mas esta nossa capital é de chutar o pau da barraca...