sala de embarque
Amanda e Paulinho namoram há dois anos. Já adquiriram avançado grau de intimidade. Trocam beijos de língua entre garfadas de pizza nas noites de domingo. Viajaram juntos para Itacaré e Bariloche e agora estão a caminho da Europa, ambos pela primeira vez, nova e eternamente juntos, até que a morte os separe. Chegaram ao aeroporto com duas horas de antecedência. Dona Sílvia, mãe de Amanda, adora um aeroporto. Gosta de se imaginar sentindo a ansiedade das pessoas prestes a perder o voo e gosta mais ainda de olhar a vitrine da butique que, entre outros artigos importados, vende perfumes franceses e óculos escuros da Prada. Arrastando o marido, Afonso, por entre prateleiras e prateleiras de muamba, deixa escapar frases como "ai, Fon, essa camisa ficaria linda em você" e, logo em seguida, como se apenas desse asas à imaginação, "e esse óculos? Imagina a gente chegando no clube para almoçar, você com a camisa e eu de óculos novo...". Ele sorri e desconversa, o olhar perdido na vendedora de produtos de beleza femininos. "No exterior é mais barato", argumenta, "vou lhe dar de presente quando formos pra Nova Iorque". Saem da loja de mãos vazias e a cabeça borbulhando de devaneios - sonhos de consumo e flashes de filmes pornô.
Amanda e Paulinho os esperam diante da entrada para os portões de embarque, ela pendurada nele, fazendo o gênero venho-tanto-a-Cumbica-que-nem-vejo-graça. Emburrada, cumprimenta os pais com um amistoso "aonde é que vocês se enfiaram? Estamos plantados aqui há vinte minutos!". Para orgulho dos progenitores, foi tratada desde pequena como o centro do mundo: "estudou em colégio particular e levou duas empregadas à loucura", gabou-se uma vez Dona Sílvia. Justificando-se, derretida, a mãe enfatiza a primeira sílaba do vocábulo importado, "a fila check in estava enorme. Pensamos que ia demorar". Amanda desacredita, bufa e o genro contemporiza, aproveitando a deixa, "olha lá, amor, depois você reclama que está com saudade da comidinha dela". O sogro ri da piada e toma a iniciativa da despedida. Abraços, beijos, divirtam-se, promessas de presentes e o casal desaparece. Ainda acenando em vão, Dona Sílvia apaga com o lenço uma furtiva lágrima - o clímax de uma ópera suburbana.
Diante do portão de embarque, o casal depara-se com a multidão de brasileiros que contamplam a atordoada movimentação dos funcionários da companhia aérea. Amanda se desanima. Não havia espaço para gente feia nos sonhos recorrentes das últimas semanas. A decepção se mescla à irritação, "ai, que povinho feio", e Paulinho come a bronca, "se você tivesse aquele cartão preto a gente esperava na sala vip e não no meio desse monte de jean charles". Acostumado com os rompantes da esposa, limita-se a apontar para dois assentos vagos, "ali tem lugar. Vem sentar, amor". Aos seus olhos apaixonados de novela das seis, a miséria de espírito se confunde com a graça das crianças que protestam por um pouco de carinho. Senta-se e acomoda a bagagem de mão ao seu lado. "Toma cuidado para não encostar nessas sacolas imundas, Paulinho", recomenda Amanda. Cumprindo a instrução, recosta a cabeça no ombro dela. Ficam em silêncio, contemplativos.
Uma ideia numa cabeça acostumada com pagode e kinoplex tem duração breve, pouco mais de 2 minutos. "Deixa eu ver as espaldas do urso", sussurra Amanda ao ouvido do maridão. Paulinho inclina o corpo para frente, permitindo que ela levante a camisa e examine suas costas. "Com cuidado para não machucar, amor". Amanda coloca os óculos de grau e inicia a cirurgia. "To com água na boca", confessa enquanto espreme uma espinha cor de manteiga. Saca uma caixa de lenços da bolsa e limpa as unhas dos polegares antes de cavocar a omoplata de Paulinho, em busca de um pelo encravado. "Ai, ai, amor!", protesta Paulinho, afastando as costas das mãos da algoz. "Calminha, urso, que a coisa aqui tá feia. Vem com a mamãe". Ele exige uma bitoca antes de se doar novamente ao tédio churdo da esposa. Amanda segue firme na limpeza. Prende a língua entre os dentes e aperta os olhos em momentos mais críticos. Paulinho esboça uma expressão de dor e logo volta a ruminar um devaneio obscuro.
Dez minutos depois, uma aeromoça finalmente anuncia o início do embarque. "Ufa. Vambora, amor, que atrás vem gente!". Os dois se apressam para não perder um bom lugar na fila. As férias estão só começando e o velho mundo os espera.
Amanda e Paulinho os esperam diante da entrada para os portões de embarque, ela pendurada nele, fazendo o gênero venho-tanto-a-Cumbica-que-nem-vejo-graça. Emburrada, cumprimenta os pais com um amistoso "aonde é que vocês se enfiaram? Estamos plantados aqui há vinte minutos!". Para orgulho dos progenitores, foi tratada desde pequena como o centro do mundo: "estudou em colégio particular e levou duas empregadas à loucura", gabou-se uma vez Dona Sílvia. Justificando-se, derretida, a mãe enfatiza a primeira sílaba do vocábulo importado, "a fila check in estava enorme. Pensamos que ia demorar". Amanda desacredita, bufa e o genro contemporiza, aproveitando a deixa, "olha lá, amor, depois você reclama que está com saudade da comidinha dela". O sogro ri da piada e toma a iniciativa da despedida. Abraços, beijos, divirtam-se, promessas de presentes e o casal desaparece. Ainda acenando em vão, Dona Sílvia apaga com o lenço uma furtiva lágrima - o clímax de uma ópera suburbana.
Diante do portão de embarque, o casal depara-se com a multidão de brasileiros que contamplam a atordoada movimentação dos funcionários da companhia aérea. Amanda se desanima. Não havia espaço para gente feia nos sonhos recorrentes das últimas semanas. A decepção se mescla à irritação, "ai, que povinho feio", e Paulinho come a bronca, "se você tivesse aquele cartão preto a gente esperava na sala vip e não no meio desse monte de jean charles". Acostumado com os rompantes da esposa, limita-se a apontar para dois assentos vagos, "ali tem lugar. Vem sentar, amor". Aos seus olhos apaixonados de novela das seis, a miséria de espírito se confunde com a graça das crianças que protestam por um pouco de carinho. Senta-se e acomoda a bagagem de mão ao seu lado. "Toma cuidado para não encostar nessas sacolas imundas, Paulinho", recomenda Amanda. Cumprindo a instrução, recosta a cabeça no ombro dela. Ficam em silêncio, contemplativos.
Uma ideia numa cabeça acostumada com pagode e kinoplex tem duração breve, pouco mais de 2 minutos. "Deixa eu ver as espaldas do urso", sussurra Amanda ao ouvido do maridão. Paulinho inclina o corpo para frente, permitindo que ela levante a camisa e examine suas costas. "Com cuidado para não machucar, amor". Amanda coloca os óculos de grau e inicia a cirurgia. "To com água na boca", confessa enquanto espreme uma espinha cor de manteiga. Saca uma caixa de lenços da bolsa e limpa as unhas dos polegares antes de cavocar a omoplata de Paulinho, em busca de um pelo encravado. "Ai, ai, amor!", protesta Paulinho, afastando as costas das mãos da algoz. "Calminha, urso, que a coisa aqui tá feia. Vem com a mamãe". Ele exige uma bitoca antes de se doar novamente ao tédio churdo da esposa. Amanda segue firme na limpeza. Prende a língua entre os dentes e aperta os olhos em momentos mais críticos. Paulinho esboça uma expressão de dor e logo volta a ruminar um devaneio obscuro.
Dez minutos depois, uma aeromoça finalmente anuncia o início do embarque. "Ufa. Vambora, amor, que atrás vem gente!". Os dois se apressam para não perder um bom lugar na fila. As férias estão só começando e o velho mundo os espera.