12 junho 2006

sala de espera

Quem espera sempre alcança, diz o ditado.
A espera é feita de expectativa e decepções.
A espera fortalece o espírito.
A espera torna a realização dos sonhos merecimento.
A espera reduz os gloriosos delírios a pequenos devaneios.
A espera é a prova irrefutável de que as probabilidades são apenas as possibilidades.
A espera acredita que não existe frustração.

Uma lista dessas bem que poderia ser encontrada numa fotocopiadora, impressa sobre papel celeste timbrado com anjos e nuvens. Em dias de ânimo normal, serviria apenas como alvo de escárnio e depois para limpar o rabo. Hoje, porém, o moral deste soldado está como a represa Guarapiranga: abaixo do limite mínimo. A poética lista de máximas, como os versos mais melancólicos e homossexuais do Bandeira, chega até a provocar lágrimas. Nada é mais patético que um Bunda na sala de espera da vida.

05 junho 2006

2o movimento da 7a sinfonia

Aquela mesma cena talvez se repetisse em um milhão de apartamentos durante a madrugada, mas em nenhum deles adquiria sofisticação semelhante. Era impossível ser seletivo na hora de escolher que clipe de vídeo baixar. A infinidade de opções e o colorido dos nomes o obrigavam a clicar em todos os arquivos disponíveis, sem discriminação. Analisava-os conforme eram descarregados no seu computador, antes mesmo de completadas as transferências. Aqueles que não satisfaziam o seu paladar eram prontamente descartados. Era a única maneira de ser criterioso. Não queria entupir a máquina com arquivos mortos, de gosto duvidoso. Excentricidade não é indiscriminação. Tinha preferência pelas morenas de pele clara. Não gostava de cenas explícitas demais, os closes de açougue. Era fundamental que o rosto da mulher aparecesse na tela e ela demonstrasse necessidade sincera e visceral do sexo excessivo que recebia em pancadas. A mecânica da cópula ele entendia bem. Estudava-a com afinco na imaginação e na vida real, aplicando as fantasias adquiridas pela internet e as surgidas espontaneamente nas namoradas que passavam pela sua vida como a água nos córregos. O que lhe parecia mais raro de acontecer eram a sincronia e sintonia de olhares que tornam as palavras necessárias em medida justa, essencial e econômica. Para tanto a cor da pele deveria ser branca e a aureola dos seios, assim como a carne entre as pernas, rosa, quase escarlate. Pelos bem aparados e bicos como botões completavam o quadro ideal. Na tela do computador, essas mulheres não tinham cheiro, mas na sua cabeça assumiam vapores íntimos e inexplicáveis. Descrever odores é tarefa inefável. São como o vinho e só podem ser conhecidos na íntegra se apreendidos pelos sentidos. A razão não serve ao prazer de se deixar levar pela ebulição do sangue. A razão, inclusive, era justamente a faculdade que perdia por completo durante o ritual de varar a noite diante da tela em busca da mulher perfeita. Aquela que julgava digna do seu esperma provavelmente contentaria qualquer outro dos novecentos e noventa e nove mil insones que como ele se masturbavam com a freqüência e a intensidade da compulsão. O que tornava o seu ritual incomum era a trilha sonora. Além do rigor visual, havia o auditivo. O segundo movimento da sétima sinfonia do Beethoven lhe servia de Éden. A sensação de se deitar nas nuvens ou arder no sétimo círculo do inferno. Não saberia explicar – outra descrição inconcebível. Certos conhecimentos da vida são reminiscências. A memória não sabe trabalhar senão pela analogia. Uma vez encontrado o par daquela noite, acionava o media player e inseria os fones do discman no ouvido. De início, o ritmo da cena explícita que engolia os seus olhos não combinava com a melodia. Sua imaginação, no entanto, era pródiga, capaz de ajustar a mais depravada orgia ao imprevisível - porém delicado - (des)concerto da sua fantasia. A mesma cópula era reproduzida mais de três, quatro, cinco vezes; também a sinfonia. O looping se assemelhava às preliminares. Não se considerava pronto para evacuar sua genialidade – esse era outro dado importante: naquele momento, a criatividade tornava suas noites brancas e lhe afligia a alma porque não sabia como exorciza-la a não ser pela pornografia – enquanto seu membro não estivesse devidamente túrgido. Admirava-o como instrumento de poder, inflamado e rijo, veias saltando debaixo da pele como se a qualquer momento pudessem estourar. O calibre do pênis é mais impressionante que o comprimento. O arco que ele descreve lhe atribui caráter. Seu cetro dobrava para baixo e apontava a terra. Achava curioso como a glande aumentava ainda mais de proporção quando constringia o sangramento. Ficava da mesma cor do seu temperamento. Exercitava aquele músculo como se esculpisse algo inédito, como Deus criou o homem a partir do barro, e só ao cabo de quarenta minutos expelia o seu ovo. Aquele pedaço de papel higiênico poderia muito bem ser os lençóis de uma cama king size em Las Vegas. A sofisticação da fantasia tinha um pé no cúmulo do cafona. A capital mundial do jogo lhe parecia a terra natal de todas as musas da madrugada. Tinha a impressão de que eram mais complacentes às suas manias quando se sentiam em casa. De fato, deitavam, rolavam e ficavam de quatro, dizendo atrocidades em inglês. O nome de Deus era, repetidas vezes, pronunciado em vão e até mesmo maldito. Adorava a boca suja das mulheres que elegia, principalmente quando se lambuzavam das sobras dele. O líquido branco jorrava para além do vidro que o circunscrevia à realidade e por todos os lados. O ritual acabava abruptamente. A incontinência do orgasmo na boca delas, sobre o papel e sobre as suas coxas. Uma gota sempre manchava as calças que haviam acabado de voltar da lavanderia. O pingo de vergonha que denunciava a pobreza de espírito daquele gesto. Revelava a preguiça de não terminar a cena da peça, o conto, o roteiro do curta-metragem ou mesmo o trabalho da faculdade. Era difícil de a remover. Só mesmo esfregando com água morna. Ou então delegando a tarefa para a diarista. As empregadas domésticas conhecem todos os segredos sórdidos da classe média. Têm o poder de destruir casamentos e famílias, mas foram educadas para obedecer. A diarista devia saber que ele fazia parte do seleto grupo dos maiores masturbadores da cidade. Devia saber muitas outras coisas. O que ninguém sabia era que ele alimentava a pornografia ao som do segundo movimento da sétima sinfonia.