cruzada fecal
Trata-se de um estudante comum. Caminha pensativo pela Praça do Relógio, em direção à Faculdade de Economia e Administração. Percebe-se pelo seu semblante grave que muitas e complexas idéias atribulam seu pensamento. Jeans e sandálias de couro, guia por baixo da camiseta branca, além de certa ginga carnavalesca, sugerem prontamente que é estudante de humanidades.
Não é, contudo, um típico exemplar da FFLCH. Esse rapaz tem cabelos curtos, a barba feita, roupas novas e limpinhas; em nada se assemelha aos neandertais marxistas ou revolucionários anarco-sindicalistas do Centro Acadêmico. Tem ares esclarecidos, quase revisionistas.
Com certeza não o veríamos em manifestações contrárias à reforma do “espaço aquário”, por exemplo, o chiqueiro no térreo do prédio da História – que mais parece um grande mictório – onde a vanguarda do movimento estudantil reúne-se para mudar o mundo. Ele é usuário da sala de estudos, afeito aos livros e, portanto, ao isolamento acústico. Sabe muito bem que as passeatas e barricadas da esquerda uspiana, formada majoritariamente pelos egressos das escolas particulares da Zona Oeste, são espaços de sociabilidade. Plain and simply, festividades onde todos podem encher a cara sem se sentirem culpados, pois o porre é político. O lema da esbórnia é tão vago quanto patético: “igualdade, justiça social, fim do imperialismo, fora FMI e não se esqueça de VOTAR NULO”. Cerveja, R$ 1.50, vinho, R$ 1.00.
O motivo pelo qual dirige-se à FEA fica assim esclarecido. Quem já visitou a FFLCH provavelmente teve a oportunidade de conferir o estado deplorável de seus sanitários. O estádio do Pacaembu possui dependências mais dignas. Alguns corredores da História lembram as primeiras linhas do célebre Manifesto Comunista, que diz, “um espectro ronda a Europa – o espectro do comunismo”. Fantasmas que fedem a fossa assombram-nos, levantando a suspeita de que a FUVEST deveria aplicar exames psicotécnicos junto com o vestibular.
Geralmente, uma das primeiras coisas que as pessoas aprendem no colégio são as regras básicas da convivência social e da higiene pessoal. Há um cartaz nas escolas primárias canadenses que diz, “All I really need to know I learned in Kindergarten”. Tudo indica que os universitários de humanidades queimaram etapas na pré-escola; não foram introduzidos à civilização. Tudo mesmo. Um passeio rápido pelos reservados da FFLCH revela mijo nas lixeiras, merda esfolada no vaso, cuspe nos cantos, catotas de nariz abandonadas nas paredes como marcas de pneu no asfalto e toda a sorte de obscenidades e racismos rabiscados com caneta BIC.
Fazendo jus à máxima de Walter Benjamim, “nunca houve um monumento da civilização que não fosse também um monumento da barbárie”, a USP, fina flor das instituições de ensino superior, esconde em suas dependências – ou melhor, esfrega na cara e, principalmente, no nariz de seu pessoal – o mais mórbido esgoto: a absoluta falta de educação. Não, nosso herói, que cultiva alma lírica e sensibilidade árcade, jamais conseguiria atingir a plenitude celestial da evacuação em ambiente tão sórdido.
Curioso é o copo plástico vazio que leva consigo. Vai batucando nele enquanto reflete sobre a intimidade e sobre a desastrosa realidade sanitária da FFLCH. Há intimidades moralmente obscenas e intimidades fisicamente imundas – qual será pior? Não chega a formular conclusões. No mesmo instante em que sente fisgar seu intestino delgado, muda de expressão e aperta o passo. O tempo urge, a tripa ruge. Olha com carinho para o copo. Em breve, será seu melhor amigo.
Ao ingressar no prédio da FEA, o bafo frio do ar condicionado refresca-lhe a pressa. Sobe a rampa central e adentra o banheiro masculino. Um eldorado de Pinho Sol descortina-se à sua frente. Ladrilhos impecáveis, sabonete líquido à base de aloe vera (o nome raffiné da tupiniquim babosa), mictórios cuja descarga é acionada pressionando-se pedais no chão, silêncio asséptico. Só falta música ambiente. Mais precisamente, a sonata n. 2 para piano e violoncelo do Rachmaninov.
Sua primeira medida é encher o copinho plástico de água. Depois, apanha um protetor de assento de papel. Tranca-se no reservado central, melhor iluminado. Faz o que tem que ser feito em grande estilo, quase se sentindo em casa. Considera-se o magnata dos infortunados, o marajá do Coco; vivesse no tempo de D. Pedro II, seria o Marquês de Piriri. Pleno, pensa que evacuar deve proporcionar idêntica sensação a visitar o Olimpo. Afrodite, Atena, Hera, Hebe, Ismênia... Um raio de fúria sexual incendeia sua imaginação. O impulso logo morre.
Bukowski dizia que obrar é como escrever poemas, processo em quatro etapas. Primeiro, o poeta enfrenta o incômodo físico da idéia. Conceito sem forma, prenúncio de poema, ela tem necessidade imediata de vencer o plano ideal e ganhar o papel. Segundo, ele deve empenhar-se em realiza-la, trabalhando duro, suando a camisa, forçando conceitos líquidos a adaptarem-se aos duros moldes da métrica e da rima. Terceiro, desfruta o prazer de contemplar sua obra pronta – troféu glorioso, porém descartável. Quarto, desfaz-se do poema como se nunca o houvesse pertencido, acionando a descarga e entregando-o ao leitor.
Terminado o serviço, o copo revela sua utilidade essencial. Só as práticas íntimas revelam se os indivíduos possuem ou não firmeza de caráter. Nosso herói, adepto xiita da limpeza e, portanto, do bidê e do chuveirinho, encharca tiras de papel higiênico, esse triste utensílio imortalizado pela classe média, antes de dar-lhes funcionalidade. Mata, assim, dois coelhos com uma única cajadada: otimiza a eficiência precária do papel e previne o aparecimento precoce da “teimosinha”, leia-se hemorróidas.